A morna “Doce Guerra”, do compositor Antero Simas é uma exaltação à especificidade das ilhas e suas gentes, ao mesmo tempo que é um hino e uma glorificação da identidade cultural do povo de Cabo Verde.
Ai naquel dia di festa
‘M qu'rê colá sanjom na Picos
‘M qu’rê batuco
Na rebera de Julião
Vulcão na praia de Santa Maria
Vale di Paúl na Boavista
Morna de nhô Eugénio
Na nhô San Nicolau.
Morna “Doce Guerra”
ANTERO SIMAS
E no embalo desta morna, faz sentido festejarmos cá na Praia o Dia de São Vicente e do seu Patrono com a apresentação de um livro que é uma declaração de amor e de homenagem à cidade-ilha do Porto Grande, ainda que feita de forma desaforada.
A meu ver, o que caracteriza, define, molda e distingue as gentes das nossas ilhas é a conjugação de três ou quatro factores históricos, geográficos, económicos e sociais, como sejam: a época e o tipo de povoamento, que têm muito a ver com o grau da sua mestiçagem cultural; o relevo ou a orografia do seu espaço ou ilha se é montanhosa ou plana, interior ou litoral, determinando a sua forma de percepcionar o mundo; e o tipo de actividade económica desenvolvida, fazendo com que tenha relações mais ou menos alargadas e seja mais ou menos aberto e cosmopolita.
Tomemos como exemplo as gentes das ilhas de Santiago (ilha maior do arquipélago, povoamento do século XV, cujas principais actividades económicas foram sempre a agricultura de sequeiro) versus gentes de São Vicente (ilha do Porto Grande, com povoamento de finais do século XVIII, com actividades económicas girando à volta da baía) e gentes de Santo Antão (segunda maior ilha, montanhosa, com povoamento do século XVI, tendo como principal actividade económica a agricultura de regadio) versus gentes do Sal (uma das menores ilhas habitadas, totalmente plana, povoamento do século XIX, cujas principais actividades económicas sempre giraram à volta das salinas e do aeroporto e, mais recentemente, do turismo).
Falemos das gentes de São Vicente. Em vez de fazer o levantamento dos traços psicológicos e comportamentais das suas gentes, sirvo-me do que me está mais à mão, porque já pronto e muito bem feito, a crónica “A Cidade do Pecado”, de João Branco, de que respigo um naco de boa prosa:
“Se há algo que caracteriza a cidade do Mindelo e a diferencia de todos os outros lugares é a sua capacidade de dar massagens no próprio ego. Há quem confunda isso com a natural e intrínseca basofaria do mindelense que, sendo por vezes contraproducente, é na maioria dos casos alavanca para uma elevada auto-estima que contribui para que projectos ousados, gente criativa, soluções inesperadas apareçam quando menos se espera.
[…] vive-se na ilha do Porto Grande numa espécie de limbo, de confusa temporada de contrastes, onde empreendedorismo se confunde com oportunismo, onde a falada crise vive lado a lado com um clima de festa permanente, onde quase nada parece ser o que é. Temos meia dúzia de pólos universitários e a maior taxa de desemprego entre a população jovem. No entanto, não se sente, cheira ou prevê qualquer tipo de contestação social, seja nas ruas, nas casas comerciais, nos bares, nas conversas, nos textos que se escrevem nos blogues, ou nas redes sociais, nas letras das músicas, na arte que se cria ou nos segredos que se contam pela surdina. Instalou-se uma paz que perdeu um pouco do seu encanto, porque não inclui nela uma efectiva vontade reivindicativa que sempre foi apanágio da nossa história” (Crónicas Desaforadas, pp. 39-40).
Apresentada a minha hipótese de partida, olhemos agora para as Crónicas Desaforadas.
Enquanto objecto, este livro é visualmente muito bonito – foto e design da capa de Hélder Paz Monteiro e Henrique Branco – com o papel de um toque muito agradável, quase sensual.
A dedicatória às duas Isabel da sua vida, a que partiu, a Mãe, e a que chegou, a Filha, é de uma ternura que nos predispõe e envolve.
O prefácio de Jorge Carlos Fonseca, Presidente da República, é uma peça literária, de uma leitura atenta e lúcida que pontua os aspectos relevantes do livro a que nada lhe escapa. Assim sendo, o Abraão Vicente e eu temos pouca margem para dizer algo interessante ou inovador que não tenha já sido dito. Porém, enquanto padrinhos deste baptismo, cabe-nos fazer o discurso da praxe.
A organização destas Crónicas Desaforadas segue a ordem inversa da sua produção – da mais próxima, Outubro de 2013, “Oh, amor, dam un coza!”, para a mais distante, Janeiro de 2008, “Um dragão na garagem”. Vou contrariar essa cronologia e fazer a minha leitura seguindo a linha do tempo, ou seja, começar pelo início – li o livro de trás para a frente. Para além de que esta crónica primeira, “Um dragão na garagem”, tem a chave e explica a razão porque Abraão e eu estamos aqui juntos, se bem que ele, mais merecedor do que eu. É que somos gente sem papas na língua, gente que não leva desaforo para casa, afinando-nos pelo mesmo diapasão de João Branco.
Antes de entrar nas crónicas propriamente ditas, convém dizer que elas têm uma função utilitária, no sentido em que o seu autor faz delas um espaço “geralmente crítico, irónico e até um pouco cáustico e amargo, para lançar polémicas, difundir reprimendas ou propor soluções com a dose de presunção que por vezes tanto […] custa a disfarçar” (p. 115).
Na impossibilidade de aqui analisar as crónicas por falta de tempo, partilho alguns desaforos que registei, sublinhando-as a lápis, e que são uma mostra do que são as Crónicas Desaforadas:
1. “Um país que não entende isto, ou não se identifica com as suas próprias dores, exteriorizadas pelos seus criadores e artistas, nunca poderá ser um país cultural. Um país que não respeita as dores de parto de cada obra de arte que é capaz de gerar será também incapaz de se olhar interiormente […]. É urgente pararmos com este fingimento de que temos muitos museus, génios espalhados pelos quatro cantos do arquipélago e uma política para a cultura neste país. É urgente transformar o Ministério da Cultura num verdadeiro Ministério da Dor. E acabar com a anestesia” (Crónica “Ministério da Dor”, p. 110);
2. “Quem se consegue manter com o nariz fora do lodaçal em que se tornou a disputa política, deve poder dar um murro na mesa, fazer alguma coisa, activamente, agir, falar, de forma livre e descomprometida” (Crónica “A Nação ainda é o que era?”, p. 100);
3. “Há pois uma crise de criatividade, uma crise de coragem. Que são, precisamente, as armas que melhor podiam ajudar a combater essa outra crise que apenas interessa a alguns poucos e acaba com a vida a quase todos. A criatividade devia ser disciplina obrigatória nos pequenos oásis de resistência que ainda nos dão alguma esperança. E esta devia ter ligação direta à coragem. Coragem para inovar, para combater, para recusar, para protestar, para acreditar que o mundo pode ser algo diferente deste lugar horrível em que se está a transformar. […] continua a ser importante que haja quem atire estas pedradas no charco. Por alguma razão uma criatura como o João Vário faz hoje tanta falta a Cabo Verde” (Crónica “A Crise”, pp. 91-92);
4. Vou para a última crónica, a primeira do livro onde, em frases curtas, João Branco retrata o nosso Mindelo de hoje (Outubro de 2013):
“Os cinemas fecharam, a Praça Nova deixou de ser aquele lugar aprazível que tanto gosto dava em passear, conversar, namorar, ver os amigos. […]. Hoje, sempre que passo na Praça Nova, sinto uma energia ruim de que algo mau nos pode acontecer a qualquer instante, a que não será alheio o facto da praça ser uma montra e um resultado dos problemas sociais na ilha, com meninas cada vez mais novas em claras posturas de prostituição, muitas crianças pedindo dinheiro à porta da Fragata, drogados deambulando pelos cantos, jovens alcoolizados, mendigos deitados, não se sabe se a dormir, desmaiados ou mesmo mortos […]. Mas ninguém pode esconder a miséria e a degradação. […] um dia o Monte Cara se transformará no Monte Cala, aquele que fica em silêncio e, por isso, consente” (pp. 16-17).
Quem fala e escreve assim é um insolente, um provocador, um desaforóde, no bom sentido do termo. SonCente e Cabo Verde precisam de mais desaforódes deste tipo pois o que mais abunda é gente manhenta e gente sem ciénça, porque com medo de falar, com medo de dizer o que pensa! Já dizia o romancista e dramaturgo sueco August Strindberg (1849 – 1912) que “a verdade é sempre desaforada”.
Há bem pouco tempo escrevi no blogue Esquina do Tempo que “Mindelo, uma cidade nascida sob o signo da História, hoje já só tem estórias para contar. Anunciam-se com ciência, paliativos e soluções às gentes sem ciénça encalhadas na ilha”. Fazer o quê, se não dizer a verdade de forma desaforóde? Antes uma verdade desaforada do que uma mentira sincera.
Estou quase a chegar ao fim e vejo que não vos falei do autor, ou falei?! Ele que se considera como “uma planta transladada, que fincou pé neste chão” (p. 116), a viver em “uma cidade e um país que [o] crioulizaram na arte e para a arte, na vida e para a vida” (p. 84), que uma vez foi classificado como “’cabo-verdiano de sinal contrário’, porque era o que queria ficar apesar de poder partir” (p. 117) e que uma vez Germano Almeida indicou como um “feliz acontecimento de crioulização” (p. 117). Se não vos falei do autor, ao menos falei do livro. O que já não é mau. Olhem que já houve uma apresentação em São Vicente em que se falou de tudo, menos do livro.
Não posso terminar sem deixar de me referir à editora. Ainda não tinha tido a oportunidade de saudar o aparecimento da Rosa de Porcelana e de felicitar os seus editores pela iniciativa, pelo que o faço agora desejando-lhes os maiores sucessos numa área como esta da edição e da promoção do livro, que, diga-se de passagem, desde há uns anos a esta parte, não tem merecido nenhuma atenção dos poderes públicos. Que 2015 seja de sucessos e de muitas publicações. Longa vida à Rosa de Porcelana e aos seus editores.
Não sou homem de levar desaforos, mas as Desaforadas de Branco, essas, levo-as para casa.
Muito obrigado!