A necessidade de reflexão sobre a temática do Teatro e cidadania resulta do facto desta forma da arte constituir um eficaz meio de intervenção social, cultural e educativo com vista a levar o ser humano a assumir-se como um ser com cidadania plena, plasmada no encontrar de espaços e momentos que permitam interação permanente.
O teatro constituiu, como sabemos, uma necessidade humana no sentido de conferir às pessoas meios e instrumentos para a promoção da comunicação, interação, participação como vista a superar problemas e bloqueios que ocorrem, fruto de um viver sem conviver.
É fundamental que se encontrem novas intervenções que respondam ao pulsar deste tempo que é um tempo em que o teatro e, consequentemente, a intervenção social, cultural, educativa e económica, são elementos que podem levar as pessoas a uma interação afetiva e efetiva que anule o individualismo.
O caso de Cabo Verde
Este fantástico Março – Mês do Teatro veio comprovar algo que já sabíamos há algum tempo: que a arte cênica é hoje um bem de primeira necessidade no nosso país, e a apropriação, pelo todo arquipelágico do conceito criado é um triunfo que não podemos desprezar. O facto é que o Dia Mundial do Teatro começou a ser comemorado com pompa e circunstância já nas portas do século XXI e foi no último ano do século passado, em 99, que o março – mês do teatro aparece com a ambição de se transformar “no segundo pólo de desenvolvimento do teatro em Cabo Verde”, isto tendo em conta que em Setembro tínhamos – e temos – esse grande evento que é o festival internacional de teatro do Mindelo – Mindelact.
As programações anunciadas, sob a mesma designação, de todas as ilhas do arquipélago cabo-verdiano comprovam uma dinâmica que é impressionante mas não tanto inesperada. A verdade é que as sementes vem sendo plantadas de há muito tempo para cá. A aposta nas formações com os grupos das ilhas tem sido uma constante. O que sempre designei de factor político que está implicado na concepção da programação do nosso festival vem-nos dar razão, ao sermos confrontados com a realidade de hoje. Sempre houve a preocupação de trazer agentes teatrais de outras ilhas ao mindelo, para ver, beber, informarem-se do universo infinito do teatro e das suas imensas potencialidades. E hoje, os resultados estão à vista. Um município orgulha-se e promove o seu teatro, vereadores da cultura são conhecidos agentes teatrais, o próprio diretor nacional das artes, aqui presente, é um homem de teatro e podemos portanto afirmar que o teatro em cabo verde é hoje não apenas contra-poder, mas também poder. E estando nessa posição, torna-se apetecível. Porque a natureza humana é inevitavelmente atraída pelo sucesso, pela possibilidade de visibilidade e pelo alcance de realização pessoal e colectiva. Deixamos de ser marginais. Passamos a indispensáveis. Aquele que é hoje ministro da cultura escreveu um dia numa crônica de um jornal: um pais pode perder tudo, menos o seu teatro e o seu sentido de humor. Quem escreveu isto é hoje quem define as políticas para o sector e cria condições para a sua concretização no terreno.
Isso acaba por trazer mais responsabilidades, muito maior visibilidade e certamente outras necessidades. Não falarei aqui dos projetos anunciados , em curso ou por concretizar, como a rede nacional de salas, o apoio à multiplicação de festivais nacionais de teatro ou à definição, mais ou menos clara, das políticas de incentivo do Estado à arte cênica. Esse foi tema discutido amplamente já neste Fórum. Mas falarei da forma como a pressa pode ser inimiga da perfeição e a vontade de mostrar “serviço”, pode gerar confusão conceptual, falta de preparação para fazer o que se pretende fazer, inexistência de rigor nas declarações públicas ou uma gritante falta de informação e de formação que poderia tornar o teatro uma ferramenta ainda mais poderosa para a manifestação de uma cidadania ativa, desafiadora e participante.
Digo-o sem papas na língua: a introdução da disciplina de expressão dramática nas escolas roça o anedótico e a irresponsabilidade. Não temos professores preparados, não temos materiais pedagógicos convenientes, não temos metodologia de ensino. Temos alguns agentes educadores com muita vontade e a nível nacional apenas uma mão de casos de gente minimamente preparada para essa tarefa complexa que é introduzir o teatro nas escolas. Não basta dizer-se que o importante é começar e que o resto virá assim, como que por geração espontânea. Não basta a manifestação de vontade política por muito que se saiba que sem esta nada avança. Principalmente sabendo, como muitos dos presentes nesta sala sabem, que o teatro mexe com o ser humano, e mais ainda, com as crianças e jovens de uma forma intensa e a vários níveis: psíquico, social, ajudando a formar valores e a definir personalidades, tocando em assuntos proibidos, e como todas as ferramentas, mesmo aquelas que são utilizadas no sentido metafórico, quando mal utilizadas podem provocar mais danos do que benefícios.
Sendo teatro sobretudo comunicação é normal e positivo que seja utilizado como instrumento de intervenção política e de cidadania activa. Mas como qualquer estudante de marketing básico saberá, uma mensagem que é mal passada ou deficientemente preparada, pode causar mais danos do que benefícios e tornar-se contraproducente. A pertinência das mensagens tem que estar aliada de forma sólida à qualidade do seu corpo, tem que estar munido de um conjunto de conceitos, tem que ter coerência informativa e formativa, para poder atingir os seus alvos e assim os objectivos para os quais foram criadas.
Hoje, se dermos uma rápida passagem pelas programações nas diversas ilhas e concelhos poderemos verificar que muitos grupos de teatro estão, numa primeira e superficial abordagem, a utilizar o teatro como instrumento de intervenção social, reforçando dessa forma o seu papel e transformando os seus agentes em cidadãos mais activos. Será que é mesmo assim? Será que basta termos inúmeras peças sobre temas como violência domestica, o vírus da sida, o alcoolismo, os problemas conjugais, luta contra o preconceito para ficarmos descansados de que o teatro está a ser bem utilizado para fazer chegar a um publico vasto um conjunto de mensagens que, à partida, se pensam serem necessárias e pertinentes? Qual é a qualidade dessa comunicação? De que forma ela é construída? Com que técnicas? Com que metodologias? Com que cuidados?
Por vezes, a confusão é tanta, que se misturam assuntos e querendo combater se acaba por promover o preconceito, ou então ao querer abordar determinado tema mais delicado que implica uma qualquer problemática social, se acaba por alimentar o monstro dos tabus e temos o teatro a servir de auto-estrada em dois sentidos, em que o feitiço se vira contra o feiticeiro.
Como precaver estas situações? Como fazer do teatro um verdadeiro instrumento de pedagogia social e até, porque não, de intervenção política, no sentido mais lato do termo?
Os três eixos fundamentais
Eu penso que a resposta está em alguns eixos fundamentais, sem os quais estaremos a dar um péssimo uso de uma arte que todos amamos e, pior ainda, a transformar o teatro em arma de arremesso contra nós próprios.
O primeiro eixo está na informação. Não podemos querer abordar determinado tema sem procurar saber tudo sobre ele. Não podemos falar de doenças sociais sem investigar, procurar, inquirir, falar com profissionais da área e construir a nossa mensagem de forma séria e coerente, até porque estamos a utilizar um instrumento de comunicação poderoso – o teatro – e a mexer com assuntos delicados.
O segundo eixo está na formação. A qualidade da mensagem, no caso teatral, está indissociavelmente ligado à qualidade do teatro que se apresenta e à correcta utilização de técnicas que nos permitam tirar dele, do teatro, o melhor proveito. Um teatro de má qualidade afasta as pessoas do teatro e da própria mensagem que este pretende veicular. A má qualidade da mensagem torna-se, em muitos casos, até perigosa.
Finalmente, o terceiro eixo centra-se na responsabilização. A cidadania activa exige responsabilidade. Um teatro de intervenção não é um teatro de recreio de má qualidade. Exige tanto ou mais trabalho que um qualquer outro tipo de teatro, muito embora eu pessoalmente até seja avesso a este gênero de terminologias. A um cidadão activo, cuja intervenção se manifesta por intermédio de uma forma de expressão artística, é-lhe exigido preparo, rigor e qualidade na acção.
Ora, nos dias de hoje, a informação está à distancia de um simples clique. As redes de transportes, por um lado, e de solidariedades, de voluntariado e de associativismo, por outro, permitem uma circulação de gente diversa, não só qualificada e preparada, como disponível para colaborar e se associar a projetos de teatro comunitário e de intervenção social. É só saber procurar, identificar e desafiar os parceiros certos.
Neste momento, podemos pensar como é possível, num país em que uma importante componente das suas manifestações teatrais existentes reivindicam esse papel de mensageiro social - como podemos comprovar pelos programas do março – mês do teatro nas ilhas – pouco ou nada se tenha feito para implementar técnicas do Teatro Oprimido de Augusto Boal ou se tenha pensado um pouco mais a sério em ligar as idéias amplamente documentadas de histórico pedagogo como Paulo Freire, e a sua Pedagogia da Libertação, na pedagogia teatral que tanto se apregoa por aí como existente nas nossas escolas. As teorias defendidas por este último, para quem não sabe, são a base fundamental de todo o programa pedagógico e educativo da SP Escola de Teatro, que é, a partir de S. Paulo, o maior centro de formação em artes do palco de toda a America Latina, e que tem, de certa forma, revolucionado a forma como o ensino do teatro começa a ser visto não apenas naquela região mas também na Europa, como acontece por exemplo, no Conservatório de Estocolmo, na Suécia, uma das mais antigas escolas de teatro do mundo.
Também por isso, e dando o exemplo de Portugal, um dos mestrados mais procurados e existente em vários estabelecimentos de ensino superior daquele país, é o mestrado em Teatro e Comunidade onde o foco está, precisamente, no papel social da arte cênica e na sua implementação, de forma ativa e consciente, no seio de uma determinada comunidade, como forma de incentivar uma cidadania activa.
Conclusão
Arte, política, palco e comunicação são noções que se cruzam. O estudo da história do espetáculo aponta que em diversos momentos o teatro foi utilizado pelo Estado ou pela Igreja como veículo das suas mensagens e propagandas. Também não é por acaso que quando se instalam regimes ditatoriais através de violentos golpes de estado, os teatros são quase sempre os primeiros edifícios a serem encerrados pelas novas autoridades e instala-se de imediato um controlo sensório de enorme violência. Dai se induz o poder que o teatro pode ter, se bem utilizado enquanto instrumento de transmissão de saber, conhecimento e alerta.
No meu ponto de vista, este tipo de abordagem do teatro e a sua prática no terreno, continua a ser encarado em Cabo Verde de forma irresponsável e leviana. Pelas razões que apontei, o caminho é longo, mas é preciso querer-se andar. Se o teatro for apenas veículo de promoção social a nível individual – e hoje essa motivação é inquestionável dada a visibilidade que o teatro granjeou e soube conquistar – nunca conseguiremos, enquanto agentes desta arte tão fascinante, ser criadores e interventivos sociais em simultâneo. Poderemos até conseguir uma carreira, mas plantaremos poucas sementes e desse terreno à nossa volta pouco nascerá de novo.
Será fundamental aproveitar este bom momento para alertar que não basta querer, é preciso e fundamental o saber. Cabe às autoridades, em primeira instância, uma maior seriedade na implementação de programas pedagógicos na área. Cabe a nós, sobretudo a nós, uma muito maior exigência na construção das mensagens que pretendemos difundir.
Porque se assim não for, poderemos até orgulhosamente ostentar o titulo de artistas, mas teremos muito pouco de cidadãos.
Nota: comunicação lida no Ii Fórum Teatro, no Mindelo.