Está neste momento a decorrer um interessante e intenso debate sobre o teatro no Mindelo, despoletado por um texto publicado pela Patrícia Silva, professora de Expressão Dramática (ou lá como se chama a disciplina oficialmente) e grande apaixonada pelas artes cénicas cabo-verdianas. Um debate que se centra na questão do fazer ou não fazer, da qualidade ou não qualidade, da pressa ou falta dela, dos impulsos e razões que fazem com que tanta gente nova queira saltar para os palcos e abraçar - apressadamente - este fantástico mundo do teatro.
O primeiro ponto de ordem que queria deixar aqui é que tive a preocupação de dizer diretamente à Patrícia o que penso antes mesmo de escrever este texto. Ainda somos muito inflamados na forma como debatemos certas questões, fica tudo com os nervos à flor da pele, sentimo-nos atacados, falamos de carapuças e de faltas de humildade ou de arrogância (o que é a mesma coisa), mas para mim o importante é que no teatro em S. Vicente se fala, se discute, se dá pedradas no charco, de uma forma saudavelmente aberta. Falta-nos ginástica crítica. Experiência. Estamos todos aprender.
Claro que há opiniões que se guardam para nós, outras que só dizemos a alguns amigos mais próximos, é normal, mas isso não reflete necessariamente uma situação de má-língua ou de mau ambiente no meio teatral. Fui sempre contra esse tipo de conclusões até porque ao contrário do que acontece com outras formas de expressão artística a maneira como debatemos as nossas questões, em Fóruns, em encontros, em Assembleias ou nas redes sociais é muito mais clara, aberta e corajosa do que nessas outras áreas. Triste? Triste foi não ter lido nenhum músico da cidade a indignar-se com o que aconteceu com o miserável grupo de forró que nos visitou! Fosse com o teatro!
Dito isto, sublinho que a Patrícia Silva no seu texto sobretudo se interroga. Todo o seu texto é feito de muitas perguntas e poucas respostas. E isso é bom. Cabe a nós procurar responder, se soubermos. Foi isso que fizeram alguns outros que se sentiram "alvos" de uma crítica já habitual não só no teatro. Recentemente, por exemplo, um mesmo debate surgiu a propósito dos jovens terem pressa em editar livros. Se o alvo não era aquele, mas sim os alunos de teatro da autora, penso que isso devia ter ficado claro. Ao não nomear ninguém, ela acaba por incluir toda a gente. Inevitável.
Ora, eu sempre gostei desse caráter "atrevido" do teatro mindelense. Atrevimento no sentido de fazer, arriscar, experimentar, mesmo que não se domine certas linguagens específicas. Atrevimento em produzir em condições miseráveis, onde só uns poucos privilegiados podem ensaiar num palco e se paga para fazer teatro em vez de as companhias serem contratadas para preencher uma programação própria de um espaço público. Atrevimento em fazer um festival que hoje é um dos maiores do mundo, mas cujo Presidente da associação que o organiza ainda tem que fugir de credores como se fosse um vigarista só porque alguns patrocinadores públicos não desbloqueiam a verba prometida no tempo devido. Atrevimento em experimentar novas dramaturgias, em crioulizar os clássicos, em se despir na cena, em combater preconceitos sociais. Atrevimento é ensaiar em condições inacreditáveis e ainda assim aparecer com produções que não só não envergonham como ainda colocam o Mindelo como centro maior da produção cénica de Cabo Verde.
Há tantos problemas estruturais no teatro cabo-verdiano, tantas injustiças contra nós e tanta gente corajosa e com talento a fazer que me parece que discutir o "excesso" de teatro é a última das prioridades. Qual é o problema então? Estamos a regredir? Há muito teatro que não tem qualidade? E porquê que isso acontece? Eu vou dizer o que penso sobre isto. É normal que haja muito teatro de má qualidade. Não temos condições de trabalho. Temos muito pouca formação. Não temos possibilidade de adaptar ao espaço. Agora nem podemos fazer as montagens de luz à noite! Monta-se cenário, faz-se a adaptação, montagem técnica, ensaio geral e estreia, tudo no mesmo dia! E mesmo assim, fazemos! Não é isso incrível? Eu penso que é!
O risco que se corre de regredir, de não evoluir, de pensarmos que somos uns génios não está localizado na cena, em quem faz, mas sobretudo em quem vê. O teatro não consegue mentir, mesmo que queira, mesmo que seja ele próprio uma grande e bela mentira. É transparente. Não tem efeitos especiais nem ecrã azul como o cinema. O teatro é de carne e osso. O teatro é pele. A mentira, no Mindelo, está do lado de quem vê. Nos aplausos que se dão sem sentir, nas visitas aos camarins para as palmadas nas costas, nas claques que se levam e tornam o jogo ganho à partida. Se é mau, escreva-se porque é mau. Se está a piorar, explique-se porquê. Falta crítica. Dizer gostei muito quando se detestou uma produção cénica é pior do que fazer a própria produção cénica pensando que se está a fazer uma obra-prima.
No curso de teatro do Centro Cultural Português existe a obrigação de ver tudo e escrever sobre tudo o que se vê. Há anos que andamos a tentar incutir a importância de uma crítica sustentada num conhecimento básico, que permita escrever sobre um espetáculo apontando defeitos de forma construtiva e pedagógica. Faço esse apelo a todos: façamos esse exercício. Deixemos de escrever numa generalidade que não cabe no debate. Quando dizemos que a culpa é de todos em geral mas não é de ninguém em particular, estamos a dizer nada. Portanto, não importa que quem escreva sobre as produções cénicas seja ator ou encenador de uma outra. Melhor ainda. Escreve sobre um espetáculo de um colega e lê o que esse outro escreveu sobre o seu trabalho. Não pode haver melhor debate do que esse.
Deixemos, pois, de mentir na plateia. De aplaudir um espetáculo como se estivéssemos num jogo de futebol. Que tenhamos coragem de entrar num camarim e dizer, depois falamos, respira por agora, mas depois falamos. E então gostastes? Depois falamos. E falar! E partilhar isso com todos os outros. Porque é difícil alguém evoluir se todos lhe dizem que ele é um génio, entendem? Mesmo que ele saiba que é mentira... O ego é uma coisa poderosa e acabamos por nos acomodar.
A melhor crítica que já fizeram a um espetáculo meu foi com um texto em que o articulista pura e simplesmente arrasou com tudo o que foi feito em cena. Quando o texto foi publicado, marquei uma reunião com todo o coletivo, lemos a crítica em voz alta e quando a produção foi reposta, mudamos muita coisa, graças a essa leitura. Por isso vos deixo este apelo, se não gostarem alguma vez do meu trabalho, digam, escrevam, que eu não mordo. Se não gostarem de mim e isso pouco vos interessar, podemos continuar a dizer que tudo o que faço é fenomenal. Porque esse é o tipo de comentários que não serve para nada a não ser fazer uma massagem no ego que passa e adormece mais do que desperta. E o teatro quer-se é acordado!
Bem hajam a todos.
O primeiro ponto de ordem que queria deixar aqui é que tive a preocupação de dizer diretamente à Patrícia o que penso antes mesmo de escrever este texto. Ainda somos muito inflamados na forma como debatemos certas questões, fica tudo com os nervos à flor da pele, sentimo-nos atacados, falamos de carapuças e de faltas de humildade ou de arrogância (o que é a mesma coisa), mas para mim o importante é que no teatro em S. Vicente se fala, se discute, se dá pedradas no charco, de uma forma saudavelmente aberta. Falta-nos ginástica crítica. Experiência. Estamos todos aprender.
Claro que há opiniões que se guardam para nós, outras que só dizemos a alguns amigos mais próximos, é normal, mas isso não reflete necessariamente uma situação de má-língua ou de mau ambiente no meio teatral. Fui sempre contra esse tipo de conclusões até porque ao contrário do que acontece com outras formas de expressão artística a maneira como debatemos as nossas questões, em Fóruns, em encontros, em Assembleias ou nas redes sociais é muito mais clara, aberta e corajosa do que nessas outras áreas. Triste? Triste foi não ter lido nenhum músico da cidade a indignar-se com o que aconteceu com o miserável grupo de forró que nos visitou! Fosse com o teatro!
Dito isto, sublinho que a Patrícia Silva no seu texto sobretudo se interroga. Todo o seu texto é feito de muitas perguntas e poucas respostas. E isso é bom. Cabe a nós procurar responder, se soubermos. Foi isso que fizeram alguns outros que se sentiram "alvos" de uma crítica já habitual não só no teatro. Recentemente, por exemplo, um mesmo debate surgiu a propósito dos jovens terem pressa em editar livros. Se o alvo não era aquele, mas sim os alunos de teatro da autora, penso que isso devia ter ficado claro. Ao não nomear ninguém, ela acaba por incluir toda a gente. Inevitável.
Ora, eu sempre gostei desse caráter "atrevido" do teatro mindelense. Atrevimento no sentido de fazer, arriscar, experimentar, mesmo que não se domine certas linguagens específicas. Atrevimento em produzir em condições miseráveis, onde só uns poucos privilegiados podem ensaiar num palco e se paga para fazer teatro em vez de as companhias serem contratadas para preencher uma programação própria de um espaço público. Atrevimento em fazer um festival que hoje é um dos maiores do mundo, mas cujo Presidente da associação que o organiza ainda tem que fugir de credores como se fosse um vigarista só porque alguns patrocinadores públicos não desbloqueiam a verba prometida no tempo devido. Atrevimento em experimentar novas dramaturgias, em crioulizar os clássicos, em se despir na cena, em combater preconceitos sociais. Atrevimento é ensaiar em condições inacreditáveis e ainda assim aparecer com produções que não só não envergonham como ainda colocam o Mindelo como centro maior da produção cénica de Cabo Verde.
Há tantos problemas estruturais no teatro cabo-verdiano, tantas injustiças contra nós e tanta gente corajosa e com talento a fazer que me parece que discutir o "excesso" de teatro é a última das prioridades. Qual é o problema então? Estamos a regredir? Há muito teatro que não tem qualidade? E porquê que isso acontece? Eu vou dizer o que penso sobre isto. É normal que haja muito teatro de má qualidade. Não temos condições de trabalho. Temos muito pouca formação. Não temos possibilidade de adaptar ao espaço. Agora nem podemos fazer as montagens de luz à noite! Monta-se cenário, faz-se a adaptação, montagem técnica, ensaio geral e estreia, tudo no mesmo dia! E mesmo assim, fazemos! Não é isso incrível? Eu penso que é!
O risco que se corre de regredir, de não evoluir, de pensarmos que somos uns génios não está localizado na cena, em quem faz, mas sobretudo em quem vê. O teatro não consegue mentir, mesmo que queira, mesmo que seja ele próprio uma grande e bela mentira. É transparente. Não tem efeitos especiais nem ecrã azul como o cinema. O teatro é de carne e osso. O teatro é pele. A mentira, no Mindelo, está do lado de quem vê. Nos aplausos que se dão sem sentir, nas visitas aos camarins para as palmadas nas costas, nas claques que se levam e tornam o jogo ganho à partida. Se é mau, escreva-se porque é mau. Se está a piorar, explique-se porquê. Falta crítica. Dizer gostei muito quando se detestou uma produção cénica é pior do que fazer a própria produção cénica pensando que se está a fazer uma obra-prima.
No curso de teatro do Centro Cultural Português existe a obrigação de ver tudo e escrever sobre tudo o que se vê. Há anos que andamos a tentar incutir a importância de uma crítica sustentada num conhecimento básico, que permita escrever sobre um espetáculo apontando defeitos de forma construtiva e pedagógica. Faço esse apelo a todos: façamos esse exercício. Deixemos de escrever numa generalidade que não cabe no debate. Quando dizemos que a culpa é de todos em geral mas não é de ninguém em particular, estamos a dizer nada. Portanto, não importa que quem escreva sobre as produções cénicas seja ator ou encenador de uma outra. Melhor ainda. Escreve sobre um espetáculo de um colega e lê o que esse outro escreveu sobre o seu trabalho. Não pode haver melhor debate do que esse.
Deixemos, pois, de mentir na plateia. De aplaudir um espetáculo como se estivéssemos num jogo de futebol. Que tenhamos coragem de entrar num camarim e dizer, depois falamos, respira por agora, mas depois falamos. E então gostastes? Depois falamos. E falar! E partilhar isso com todos os outros. Porque é difícil alguém evoluir se todos lhe dizem que ele é um génio, entendem? Mesmo que ele saiba que é mentira... O ego é uma coisa poderosa e acabamos por nos acomodar.
A melhor crítica que já fizeram a um espetáculo meu foi com um texto em que o articulista pura e simplesmente arrasou com tudo o que foi feito em cena. Quando o texto foi publicado, marquei uma reunião com todo o coletivo, lemos a crítica em voz alta e quando a produção foi reposta, mudamos muita coisa, graças a essa leitura. Por isso vos deixo este apelo, se não gostarem alguma vez do meu trabalho, digam, escrevam, que eu não mordo. Se não gostarem de mim e isso pouco vos interessar, podemos continuar a dizer que tudo o que faço é fenomenal. Porque esse é o tipo de comentários que não serve para nada a não ser fazer uma massagem no ego que passa e adormece mais do que desperta. E o teatro quer-se é acordado!
Bem hajam a todos.