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João Branco
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Sobre As Palavras de Jo

1/10/2016

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Fui ver ontem na ALAIM, Palavras de Jó, um monólogo encenado e interpretado por João Branco, no primeiro dia do Mindelact, e, devo dizer que, depois dos cerca quarenta e tal intensos minutos de lavagem espiritual, por absorção plástica, sonora e lírica do puramente belo, deixei a academia, sentindo-me em ressonância positiva, e acreditando mais na boa índole do Homem e na poesia da existência.

O texto da peça, é o que eu chamaria de, uma bela e poética blasfémia - passe a expressão - do livro de Jó e da Bíblia. O Jó de Matéi Visniec não é mais o homem temente a Deus, do Antigo Testamento, mas um homem com a mesma retidão , bondade e endurance no sofrimento, e que, apesar de todos os pesares, ainda acredita, desesperadamente, no género humano. Embora impregnado de laícismo trata-se sem duvida de uma profunda profissão de fé na integridade do homem, na sua vocação para o amor e o bem, no poder do pensamento e do seu maior veiculo de expressão: a PALAVRA. #Palavras_de_Jó, fala pois, num tempo de descrença, da esperança num homem feito á imagem e semelhança da poesia, e é tudo! 

Na mesma linha do texto a encenação de J.B., assistida por Patricia Silva, monta quadros impactantes, sublinhados por scream de Guitarra elétrica (exímia de Nuno Tavares), fazendo a não apologia da violência, do sangue, do terrorismo e outros ismos, como via legitima para sarar as dores da humanidade. 

A interpretação assenta-se numa partitura audiovisual muito bem construída, e o texto é dito com um andamento entre Adagio e Moderato, mas nunca roça a litania, seja porque o gestual é sóbrio mas forte e a emoção faz o ponto, seja porque o actor quase nos toca fisicamente com a sua honestidade artística e em cada respiração e silencio há muita coisa para ser lida por quem nao sofre de cegueira plástica.

O intróito da peça, como todo o inicio "Branconiano" do meu ponto de vista, é longo e puxa a repetição ao limite, talvez para criar o clima e dar o andamento da peça, mas o final é deveras apoteótico, luminoso, e até surpreendente pelo "Repar" à Black Side das palavras de Jó. 
​
Há porém em toda a peça um elemento , não sei até que ponto intencional, mas que marca e interpela: O apontar do dedo, primeiro a nossa esquerda depois a direita e finalmente para nós! Porque? Para quem exatamente? Cá por mim as palavras de jó, de joão Branco/Matéi Visniec é um apontar de dedo não à humanidade mas para o interior do homem. E é tudo.

Texto crítico de Emanuel Ribeiro - publicado a 19 de setembro de 2016
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Estrangeiras

8/8/2016

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​A vontade de juntar o saber literário de José Luís Peixoto à nossa paixão pelo teatro vem de longe. A ligação do autor a Cabo Verde é forte, intensa e, provavelmente, inspiradora, pois a sua biografia inclui uma passagem pela cidade da Praia, onde viveu durante um ano. 

E o tempo, nestas coisas, tem sempre razão. Foram cerca de dez anos entre uma conversa e a concretização da promessa entre dois amigos, tornada possível graças à confiança depositada pelo Tiago Guedes, a quem agradecemos a oportunidade. Decidimos, então, falar sobre essa tal lusofonia, que ninguém sabe muito bem o que é. Juntando a dramaturgia com a encenação, convocamos os espetadores para um debate e uma reflexão sobre esta condição de lusófono, que se sustenta numa língua que é comum só nas aparências. Um espaço geográfico que traspassa todos os continentes e onde o desconhecimento mútuo é regra. Ao colocar três mulheres de três nacionalidades ditas lusófonas numa situação de confinamento, dá-se o mote para a construção de uma ponte que se quer mais real do que virtual, através da criação artística. Através do teatro. 

Uma cabo-verdiana, uma portuguesa e uma brasileira estão fechadas na sala de um aeroporto, nos Estados Unidos da América. As três têm em comum a língua – ainda que tenham dificuldade em se compreender mutuamente – e problemas burocráticos para entrar num país estrangeiro. São estrangeiras, perante o novo território e entre elas. O que as liga, efetivamente? Quem é responsável pelas imagens distorcidas que tem umas das outras? 

Este espetáculo não é uma metáfora. É um encontro, efetivo e concretizado pela coragem e atrevimento de mentes empenhadas. Com uma equipa artística que se divide pelos nossos três países, e sem aquela necessidade premente de respostas imediatas, foi com prazer que construímos este universo absurdo,  que partilha histórias e fragmentos de culturas que, à partida, pensávamos serem apenas nossos. 

Porto, 08 de Julho de 2016 (texto da folha de sala, alusiva à estreia do espetáculo)
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Djunta Mon: Um sonho em movimento

20/3/2016

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Em Cabo Verde, a expressão em crioulo Djunta Mon tem uma grande importância social e cultural. Significando, literalmente, juntar as mãos, o conceito vai muito além disto e representa a capacidade que o cabo-verdiano tem de se superar graças ao espírito de entre-ajuda que tem sido apanágio deste povo crioulo, praticamente desde o início da sua fundação.
 
Por exemplo, na história da Cidade Velha, antiga Ribeira Grande, cidade da ilha de Santiago, registaram-se pelo menos 18 ataques de corsários de diferentes nacionalidades, justificados pela riqueza acumulada do tráfico negreiro, nos séculos XVI e XVII. Um dos casos mais “midiáticos” é o do pirata Francis Drake que, com uma força de cerca de mil homens, desembarca no outro lado da ilha. Durante a noite, percorre a distância que separa da Ribeira Grande, atacada na madrugada de 17 de Novembro. A população já abandonara a cidade e o saque não terá sido o que os corsários esperavam: por desforra, tudo rapinam, até os sinos das igrejas, e incendeiam Ribeira Grande.
 
Ora, muitas vezes, para sobreviver, todos tinham que se ajudar na fuga para as montanhas. Escravos, senhores feudais e até as autoridades coloniais. Alguns escravos aproveitavam para fugir e não mais voltar à cidade, mas o que prevalecia, apesar de tudo, era um espírito de entre-ajuda que nascia da consciência de que perante aquela ameaça exterior, ou se juntavam ou morriam todos.

Mais tarde, a ameaça veio das secas e da fome, que chegaram a dizimar, nalguns casos, um terço da população das ilhas. Novamente, a entre-ajuda entre familiares, amigos e até desconhecidos passou a ser condição de sobrevivência. E assim nascia a expressão crioula djunta mon. A união faz a força.
 
E foi graças a este espírito que nasceu no Mindelo, no passado dia 22 de janeiro, a Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo (Alaim), que contou com uma militância, entre muitos outros, de Ivam Cabral, diretor da SP Escola de Teatro, na campanha desenvolvida no Brasil. Além desta, foi feita outra em Portugal e uma terceira em Cabo Verde. Empresários locais participaram com material e mão de obra. Artistas deram a cara. Algumas instituições apoiaram. E o sonho nasceu.
 
Um espaço que não tem trabalhadores, tem militantes. Não tem alunos, tem aprendizes. Um espaço que previligia o ensino artístico informal em liberdade, para crianças e jovens, num país que se diz cultural mas onde falta tudo: espaços de apresentação, escolas de formação, material técnico e didático e pessoal qualificado. O nascimento da ALAIM não vai mudar essa realidade, feita de dificuldades, vazios e urgências. Mas o que foi conseguido graças a um djunta mon como há muito não se via e sentia em Cabo Verde, mostrou que sonhar é bom e que esta expressão, nos dias de hoje, marcados por um individualismo exacerbado, continua a fazer sentido para o povo das ilhas.

​Crónica publicada no portal da SP Escola de Teatro. Março 2016.
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Uma carta aberta pela Liberdade

21/10/2015

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Uma carta aberta, pela Liberdade.



Exmº Senhor Presidente da República de Angola,
Eng. José Eduardo dos Santos
 
Os abaixo-assinados integraram, em 1970-1971, na qualidade de réus e de advogados destes, o Processo nº 44/70, do 4º Juízo Criminal de Lisboa, vulgo Tribunal Plenário da Boa Hora.

Nesse processo, o Governo colonial-fascista português e a sua polícia política, a PIDE, acusaram 10 jovens – quase todos naturais de Angola – de desenvolverem “actividades atentatórias da segurança do Estado” e de colaborarem com “movimentos terroristas” “para fazer com que, por meios violentos e com o auxílio estrangeiro de países inimigos de Portugal, se separe da Mãe Pátria aquela parcela de Território Nacional (Angola)”.

Nessa ocasião, em 21 de Outubro de 1970, o representante em Argel do MPLA, Castro Lopo, leu, aos microfones da rádio “A Voz da Liberdade” um apelo do Movimento em que dizia: “Sob a acusação de conspiração contra a segurança do Estado português, assistimos na realidade ao processo sumário de todo um povo de mais de 5 milhões de homens, nessa hora submetidos a tribunais e leis que nunca recohecemos como legítimos.” O MPLA exortava todos os que escutavam, portugueses como angolanos, à solidariedade com os réus do Tribunal Plenário de Lisboa:
“Que cada um de vós não se furte às responsabilidades que lhe cabem por cada um dos dez acusados sentados no banco dos réus. Que cada um de vós se sinta responsabilizado pelas centenas de angolanos que definham e morrem em campos de concentração, em Cabo Verde ou em Angola. Que cada um de vós se sinta responsabilizado pela sentença condenatória que vai ser lida e que foi decidida em vosso nome.”

Passaram 45 anos, e a prisão em Angola de Luaty Beirão e outros jovens que contestam o regime acorda em nós a memória desse processo em que fomos réus e advogados. Na acusação que lhes é feita encontramos o eco da que nos foi feita quando lutávamos pela independência de Angola, as “actividades atentatórias da segurança do Estado”. Mas na nossa consciência ecoam também as palavras do Apelo do MPLA: não, não nos furtamos à responsabilidade que nos cabe perante esses jovens encerrados nas prisões de Luanda, culpados de lutarem por um sonho que era também aquele que afirmávamos no Tribunal Plenário de Lisboa: o de um futuro livre, feliz e progressivo para todos os filhos de Angola independente. O sonho dos pais fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola. Não podemos furtar-nos à responsabilidade que nos cabe por não termos conseguido cumprir esse sonho, por não termos deixado aos jovens esse país que sonhámos. 

Passaram 45 anos, Senhor Presidente, mas não nos esquecemos. E queremos acreditar que também o Senhor Presidente recorda ainda a sua juventude e os sonhos daquela a que Pepetela chamou A Geração da Utopia. É em nome dessa memória, Senhor Presidente, e com o mesmo amor por Angola que nos fez enfrentar a PIDE e o Tribunal Plenário, que lhe solicitamos a imediata libertação de Luaty Beirão e dos seus companheiros de prisão.

Para maior certeza de que esta carta chegará à sua atenção, permitir-nos-emos dar-lhe pública divulgação.
​
21 de Outubro de 2015

Diana Andringa
Manuel Macaísta Malheiros
Maria José Pinto Coelho da Silva
Mário Brochado Coelho

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Mindelact da dor e da Fenix

23/9/2015

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No ano passado, por ter sido ano 20 e festa em grande, muitos dos problemas foram disfarçados e até se aumentou o número de dias do festival, que entrou Outubro adentro. Este ano, já não houve tapete que chegasse para esconder a angústia que estamos a viver.

É curioso, e gratificante, ver tanta gente importante a falar do mindelact por estes dias, alguns até em fóruns internacionais, dando o exemplo deste festival ímpar como um sinal de sucesso da implementação das economias criativas em Cabo Verde. Mas hoje, digo-vos com toda a sinceridade, a criatividade não nos vai chegar. Já não nos basta. Por muito afecto que exista, que existe. Por muitas provas de generosidade que artistas de todo o mundo nos continuam a dar, oferecendo o seu trabalho, há um conjunto de factores mínimos que é preciso assegurar para que o afecto se possa materializar em bem-receber. 

Nesta edição, pela primeira vez em muitos anos, vestimos a camisola do festival apenas de forma metafórica. Pela segunda vez não tivemos camisolas do festival, aquela recordação básica que levamos para casa no regresso e passeamos pelas ruas com a satisfação de termos connosco uma prova de que estivemos aqui, em Mindelo, em Cabo Verde, num festival que é adorado por tantos em tantas partes do mundo. Ah, e a primeira vez que não tivemos camisolas do festival foi em 1995, na sua primeira edição, inventada para um fim de semana e engendrada em apenas alguns dias por uns quantos malucos pelo teatro, arte quase desaparecida do panorama nacional naqueles tempos. 

Este ano também não tivemos aquelas bolsas de pano, cuja moda de existência nos eventos foi lançada por nós, no festival dos amores pelo teatro. Este ano também não tivemos crachá, um simples cartão impresso a cores e colocado num revestimento de plástico, algo que nos permitisse exibir nas ruas da cidade do Porto Grande e para que cada um dos seus habitantes pudesse ver que sou um "artista", ou faço parte do "staff". Para que a cidade pudesse saber que também eu sou "mindelact".

Não tivemos nada disso para poder ter o básico dos básicos. Um sítio para os artistas se alimentarem e um outro para dormirem o mais confortavelmente possível. E sendo claro que a alegria mantêm-se, há uma triste nuvem a pairar nesta edição 21. Não podemos esquecer a intervenção dos responsáveis do mindelact, esgotados e quase sem esperança. Não é a música animada de todos os dias no pátio do Centro Cultural do Mindelo que vai amenizar isso, nem as gargalhadas do Enano, nem a qualidade ímpar de muitos dos espetáculos que temos programado, não apenas no auditório, mas em muitos outros espaços da cidade. 

Na terça-feira emocionei-me porque vi o pátio cheio de crianças assistindo apresentação de dois brasileiros loucos com um talento inimaginável no domínio pleno das artes circenses, despertando naquelas mentes fascinadas pela magia que nascia ali mesmo, algo novo, quem sabe um novo amor pelo teatro. Uns tipos que vivem no Sal a entreter turistas porque adoram surfar mas que viajam pelo mundo fora, quando querem, porque tem talento e nome feito. E vieram ao mindelact, sem pedir nada, sem cobranças, sem exigências, apenas com aquela alegria de partilhar e de receber em troca o brilho e as palmas daquelas crianças. 

Este foi para mim um festival de dor. Festejei, mas doeu. Emocionei-me, mas doeu. Porque a cada emoção boa eu só conseguia pensar, porquê que ainda não fomos bafejados pela sorte ou pelo bom senso? Porque será que temos que renascer das cinzas como Fénix, ano após ano, quando rios de dinheiro são esbanjados neste país e o que o mindelact precisa para continuar a marcar a diferença são apenas algumas gotas? Sim, é isso. Seja da taxa ecológica - porque as nossas mentes ficam mais limpas, nossos espíritos mais saudáveis; seja da taxa turística - porque contribuímos, e  de que maneira, para uma boa imagem de Cabo Verde no exterior; seja num Contrato Programa com financiamento garantido pelo Orçamento de Estado fazendo jus ao Estatuto de Utilidade Pública que, a título oficial, a Associação Mindelact conquistou graças ao seu percurso e trabalho em mais de duas décadas; seja como for, algo tem que ser feito. 

O sentimento é de tristeza sim, ainda que disfarçada. E a minha opinião é que todos os agentes teatrais se devem unir mais, se devem libertar das amarras do "eu" e criar laços com o "nós" e falo aqui para dentro, para o pessoal do Mindelo, que é quem tem a obrigação primeira de contradizer o tal dito popular de que santos da casa não fazem milagres. O festival Mindelact, o tal Milagract, já fez muito. É tempo de dar o retorno. De sentir as palavras transformadas em acção. 

De outra forma, se em cinzas estamos por abandono e incúria, em cinzas prefiro ficar. Nem que seja ali, na quietude, como mostram as imagens de promoção da edição deste ano, tão certeiras e tão carregadas de um simbolismo de silêncio e de abandono. Cinco cadeiras vazias, voltadas para a imensidão do mar, as montanhas ou nalguma estrada deserta. Olhando o horizonte, esperando que o vento ou que alguma onda as leve, definitivamente. Será que ainda vamos a tempo de transformar esta triste poesia imagética em esperança? O futuro tem a palavra. 
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O medo instalado em cada um de nós

14/9/2015

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Texto sobre a encenação de "Do-Eu", apresentado no Teatro Vila Velha, nos dias 24 e 25 de Agosto, no âmbito do projeto KCena 2015.


Quando cheguei ao Teatro Vila Velha para esta segunda experiência do KCena, vinha completamente aberto para tudo, sem nada pré-definido, a não ser com os diálogos do escritor Rui Zink, no seu livro “A Instalação do Medo”, cujo potencial cénico era inegável. Trabalhei com um elenco constituído por duas dezenas de intérpretes e criadores que comigo construíram uma dramaturgia sustentada em dois campos complementares: um micro e interior, onde cada um procurou e expôs durante o processo – com uma extraordinária coragem – o medo da gaveta mais escondida do seu ser; e um macro e exterior, onde se denuncia a instalação global do medo a que todos estamos sujeitos, pela propaganda, pelos mídia, por políticos e/ou criminosos e por todos esses pequenos ou grandes poderes instalados que tentam, a todo o custo, e com relativo sucesso, ser donos de nossas vidas. 

Eduardo Galeano, famoso escritor cujo texto sobre o medo também é incluído no espetáculo, dizia que é preciso criar tendo um olho no microscópio e outro olho no telescópio, e foi isso que procuramos fazer. Enfiamos um bisturi dentro de nossas almas e vomitamos nossas dores e medos mais profundos. Por outro lado, ironizamos sobre a forma como o medo vem sendo instalado por quem entra em nossa casa sem pedir licença e instala um serviço de manipulação que nos faz ter medo de própria sombra, nos transforma em seres inertes, que tudo aceitam sem protesto, que tudo comem sem questionar, que tudo ouvem sem refletir. 

Muitas vezes nos emocionamos durante o processo, que foi sempre colaborativo e contou com a participação de todos, construindo nosso mundo enclausurado, dividido a régua e esquadro, cruel e paralisador, com o qual o público será confrontado.

Que o medo de cada um, seja isso mesmo, apenas o medo de cada um. E não o medo que o sistema quer que exista em nós. Que esse medo sirva para estar alerta e não desatento, que seja enfrentado e que com ele possamos conviver e crescer. E se este medo ficar de saco cheio e quiser ir embora, deixemo-lo ir. Arranjamos outro. Ou esse outro nos encontra a nós. Mas que essa seja sempre uma escolha nossa ou do nosso medo. 

Precisamos, cada vez mais, como disse Galeano, de lutar por um mundo que seja a casa de todos e não a casa de poucos – e o inferno da maioria. 


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O verbo em Branco

14/9/2015

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Sobre o livro “crónicas desaforadas”
por Maneco Nascimento



“(...) pessoas que até hoje já passaram pelas formações do Centro Cultural Português apenas confirmam uma evidência demonstrativa do poder que a arte cênica tem de nos impregnar até aos ossos. Não é por acaso. E ninguém como algumas personalidades que já vivenciaram a arte cénica nas suas vidas para nos ajudar a definir este mistério por palavras. Garcia Lorca, dramaturgo, escreveu que ‘o teatro é uma escola de pranto e de riso, e uma tribuna livre onde os homens podem pôr em evidência morais velhas ou equivocadas e explicar com exemplos vivos normas eternas do coração e do sentimento humanos’; Luís Miguel Cintra, encenador, defende, numa sentida declaração proferida no Dia Mundial do Teatro, que a arte cénica ‘não é uma arte individual, é uma arte coletiva. No teatro não se pode trabalhar sozinho. E ainda bem. O teatro ensina a viver. A viver com os outros e para os outros’. Finalmente, Mário Lúcio Sousa, atual Ministro da Cultura, escreveu numa crônica que ‘depois da fome, duas desgraças podem arrasar uma nação: a morte do Teatro e a Agonia do humor”.

Cá está o porquê de, nos tempos de hoje, a arte cénica ainda ter essa capacidade de fazer brilhar no olho humano a luz que reflete a capacidade de sonhar: porque o teatro é livre, porque enfatiza o coletivo ou porque a sua ausência pode acabar com o espírito de uma Nação. Dezembro 2011” (Branco, João. Crónicas Desaforadas. Lisboa: Rosa de Porcelana. 2014. 142 p. [Até aos Ossos] - Coleção Em Se Plantando, Tudo Dá)

Textos intensos, escritos com clareza de coesão e coerência de discurso, de denúncia e facilitação reflexiva acerca de artístico, comportamento, sociedade, língua, linguagem, nação, teatro, corpo e sangue cênicos, em tratados de arte e ofício na ilha de Cabo Verde, cidade de Mindelo.

Crônicas reunidas de reflexões de escritos, em anos de trabalho que marcaram inquietações e a necessária oportunidade de discutir o fazer e o manter a arte e a vida ativas a gosto e a contragosto do tempo de existir e ser dramático no palco e nas vivências que marcam experiências na mão e contramão da escolha da profissão, de ser artista.

30 crônicas em tempo datadas e dispostas em descendência, de 2013 a 2008: “Oh Amor, Dam Um Koza!” [.13]; “Os Dois Lados do Silêncio”, “Ensaio Sobre A Má Língua”, “Às Mulheres de Cabo Verde”,  “O Coração de Inês”, “Ensaio Sobre A Cegueira”, “A Cidade do Pecado” [.12]; “Um País Inteiro de Pés Descalços”, “Até Aos Ossos”, “Let’s Talk About Sex”, “Vamos Lá”, “Dentro, Perto & Baixo”, “Limpemos As Nossas Cabeças”, “O Nosso Maior Pecado”, “O Sentir da (na) Criação”, “Somos Todos Amigos”, “A Minha Caixa de Pandora”, “Odisseia No(s) Espaço(s)” [.11]; “A Crise”, “O Espírito Mindelact”, “A Nação Ainda É O Que Era?”, “De Profundis”, “Ministério da Dor”, “Onde Estão Os Nossos Mestres”, “Uma Sentida Declaração de Amor” [.10]; “A Morte do Nosso Cinema Paraíso”, “Os Equívocos da Crítica”, “O Meu Mundo Por Um Sorriso”, “Manifesto Teatral” [.09] e “Um Dragão na Garagem” [.08]

Das misérias e degradações de natureza das cidades visíveis invisibilizadas pelo descuido político; dos silêncios, do silêncio do teatro e do silêncio da omissão; da má língua que está em toda parte; o papel da mulher e a reflexão sobre a nova atitude que quebre tabus deterministas; do(a) filho(a) de peixe com alma de artista; da cegueira social que imobiliza as sociedades; das cidades orgulhosas de sua imagem, mas com equipamentos culturais intangíveis esquecidos, olhados de soslaio; da cidade, de Cesária, descalça, já sem sua Diva; do teatro da pele até aos ossos; da cena de identidade da vida real.

+ dos processos criativos da arte, da cena; dos discursos e práticas políticas reprodutoras dos velhos costumes; a arte e educação de segundo plano político; o disse me disse fora d’essência das relações; abrir a própria caixa de pandora; tempo e espaço cênicos, interior e exterior d’arte; a crise econômica mundial e as crises do corpus social; a obra em arte do festival Mindelact; quebrar a mesa, acordar à realidade.

E, ainda, da condição humana, a condição artística; romper com a anestesia social e ser + política de razão e sensibilidade; + mestres livres do lago das vaidades; lição de amor e sodade; a morte de equipamentos culturais; as leituras enviesadas e de fé cega da crítica; a perda do sorriso social; manifestar o fazer cênico que espelha a si próprio e o mito do dragão na garagem no contraponto de que o artista é sua obra e práxis de realidade.

Se não é assim que fala Zaratustra, mas é assim que brada Branco. Esse poeta, escritor, ator, diretor, encenador, dramaturgo da cena e homem da arte que não quer amortecer-se. Estar vivo, conflitante, arguto e perspicaz para não perder a veia criativa da arte do teatro e da vida que se interpõe na cena dramática.

É um cronista desaforado, esse João Branco. As crônicas arvoradas de verdades inquietantes, mas necessárias de provocações para que se acorde para as leituras do mundo, que dinâmico urge que se aprecie a vida e o tempo, sem moderação. Não perder a ternura, enquanto rígido, mas sem também enlear-se no éter das vaidades ardentes e cintilantes.

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Violência no estado sólido

23/7/2015

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Texto alusivo à encenação de Morabesta (2015)

A dois dias de estrear este espetáculo recebi as provas de um livro sobre o trabalho de ator que tinha, entre muitas outras preciosidades, esta frase de Fernando Amado, pedagogo e professor de teatro: “o teatro é alma humana revolvida até às entranhas.” Achei uma curiosa coincidência, ou talvez não, que isto me tenha surgido depois de, durante quatro semanas, ter saído dos ensaios da biblioteca do Centro Cultural Português com as minhas entranhas revolvidas. Pela temática escolhida, pelas cenas seleccionadas, pela energia que se acumulava num espaço mínimo, com vinte e um intérpretes criadores, mais do que alunos de teatro, seres humanos, vivendo num país concreto – Cabo Verde – e numa ilha específica – S. Vicente.

Não tenhamos ilusões: a violência é intrínseca à condição humana. Basta pensarmos no maior dramaturgo de todos os tempos, William Shakespeare, que viveu num outro continente, numa outra era, e foi um mestre no tema. Quem conhece a obra do genial bardo inglês lembra-se de Titus Andronicus, cuja última montagem no Global Theatre de Londres, em 2014, fez com que vários espectadores, enjoados e sem conseguir aguentar o banho de sangue que se desenrolava à sua frente, abandonassem o teatro, o que não impediu que a temporada tivesse sido um sucesso, com todas as sessões esgotadas. A brutalidade da peça é tão extrema - terminando com a infame cena em que uma mãe é obrigada a comer pedaços de seus próprios filhos, que a plateia ficou atordoada. Por alguns instantes, após fechar as cortinas, as pessoas não conseguiam reagir, sem saber se deviam aplaudir ou simplesmente deixar o teatro em silêncio. E por alguma razão Shakespeare é reconhecido como o maior retratista da alma humana.

Isto para dizer que o que estamos a encenar não é um exclusivo de Cabo Verde ou do Mindelo. Existe em todo o lado. No entanto, o que nos incitou a tratar um tema tão difícil foi essa nossa tendência de minimizar os defeitos, pintar a realidade em tons cor-de-rosa, enfiar a cabeça na areia ao som de uma morna e gritar aos quatro ventos que somos o país da morabeza, onde não há ouro nem diamantes, mas há essa paz de Deus, que “na mundo ka tem”, como tão bem cantou Cesária Évora. E sair pelas ruas aos pulos, a comemorar um Carnaval de Verão ou preocupados com a roupa que vamos usar numa party I Love qualquer coisa.

Infelizmente, a realidade bate-nos à porta para lembrar que não somos assim tão diferentes. Promovemos uma cultura de aparente segurança, com policias especiais de caras tapadas, armados até aos dentes que saem enfileirados pelas ruas da cidade vestidos de negro, por alguns cidadãos reconhecidos como uns heróis justiceiros, e proclamamos a melhoria dos dados estatísticos em matéria de combate à criminalidade, ao mesmo tempo em que um dos nossos atores é assaltado depois de um ensaio, por um individuo que nem se preocupou em tapar a sua cara, lhe encostou uma faca ao pescoço, lhe roubou os poucos pertences que tinha e o ameaçou de morte em caso de resistência.

Mal ou bem, todos os episódios retratados ou mencionados neste espetáculo aconteceram na realidade. Em vários deles, membros do elenco foram vitimas ou testemunhas diretas. Daí a dificuldade deste trabalho e de todo o processo criativo. Foi para nós importante ter presente que não quisemos nunca ter graça ou fazer piada com o sofrimento dos outros, porque somos testemunhas de episódios diários em que cidadãos fazem piada com a violência que o vizinho sofre, ou são meros espectadores ou assumem o discurso de responsabilizar a vitima pelo sucedido. Porque fizemos então, este espetáculo? Porque não queremos calar. Porque queremos gritar. A nossa sociedade está doente. Aqui, no Mindelo, a dois passos da Praça Nova, lugar nobre e central da nossa cidade, seres humanos foram violados, esquartejados e os seus pedaços enfiados numa mala. Aqui, no Mindelo, um jovem morreu, provavelmente porque não lhe foi prestada assistência por quem passava de carro, depois de um assalto em que tinha sido esfaqueado. Aqui, no Mindelo, um homem foi assassinado com tal violência, que a sua cara ficou totalmente desfigurada, por causa de um surto de pontapés desferidos sem dó nem piedade. Aqui, no Mindelo, mulheres são abusadas, violentadas, agredidas, física e verbalmente, em cada rua, em cada esquina, em cada casa. Aqui, no Mindelo, aumentam os casos de crianças que sofrem de abusos, sexuais e outros, na
maioria dentro das suas próprias casas. Aqui, no Mindelo, continuamos a assistir, sem nada fazer, a episódios em que pais agridem fisicamente os seus filhos em locais públicos.

E quem é responsável por esta situação? Somos todos, temos consciência disso. Somos todos responsáveis. Com Morabesta tentamos fazer a nossa parte. Uma coisa é certa: este foi um processo que mudou um pedaço de nós, que nos abriu os olhos, que nos despertou. A criança que pede esmola à porta do supermercado, subitamente, deixou de ser invisível aos nossos olhos. Só por isso já valeu a pena. E queremos ajudar a combater esta violência sólida que vive entre nós. Porque como escreveu Jean-Paul Sartre, a violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.



@ fotografia de Helder Doca. Todos os direitos reservados
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Por mares nunca d’antes navegados…

20/6/2015

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Uma crónica de José Mena Abrantes, sobre o MarDrama 2015


Terminei a minha última crónica com a aterragem sempre sujeita a ventos cruzados na maravilhosa Ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, onde ia participar no MarDrama – Encontro Internacional de Dramaturgia em Língua Portuguesa, organizado pelo responsável do Pólo do Mindelo do Centro Cultural Português, o luso-caboverdiano João Branco.

De Cabo Verde participaram no evento o próprio João Branco, actor e encenador; Abraão Vicente, escritor, artista plástico e deputado da Assembleia Nacional; e Caplan Neves, psicólogo e dramaturgo. Idos do Brasil estiveram presentes Fábio Brandi Torres, do Centro de Dramaturgia Contemporânea de S. Paulo; Lorenna Mesquita, actriz; e o director da SP Escola de Teatro, o dramaturgo, actor e encenador Ivam Cabral. Estiveram também presentes, representando respectivamente Portugal e Angola, o escritor e professor Rui Zink e o autor destas linhas.


Não eram muitos, mas a sua presença garantiu uma mínima diversidade na abordagem do tema central do encontro, que era o de ‘Dramaturgia e Identidades’, tema que, como se sabe, conduz sempre à conclusão de que identidades há tantas como seres humanos no planeta, sem que isso interfira na unidade fundamental que nos liga a todos. Na ocasião foi feito o lançamento da peça que prova isso mesmo -‘Quotidiamo: esta não é uma história de amor’.


Escrita a oito mãos por Rui Zink, Abraão Vicente, Ivam Cabral e eu próprio, numa sequência que não envolveu qualquer troca de impressões prévia, essa peça, editada pela angolana Mayamba, deu o mote para o estabelecimento de novas pontes criativas entre esses autores e cerca de vinte pessoas inscritas para uma curiosa e inédita ‘oficina de escrita’, que nos fez navegar por mares desconhecidos no quadro do MarDrama.
Sob orientação de cada um dos autores do ‘Quotidiamo’ foram criados quatro grupos, cada um encarregado de iniciar um texto dramático que seria continuado pelos restantes grupos, em permanente regime cruzado. Todos participaram, portanto, na elaboração das quatro peças surgidas num tempo recorde de apenas quatro horas, em duas sessões consecutivas.


Isso não foi lá muito animador para aqueles que, como nós, já são tidos como dramaturgos, porque todo o mundo pôde constatar que afinal não é assim tão difícil escrever uma peça de teatro… Se calhar foi já com essa intenção que o João Branco nos pregou essa ‘rasteira’, que esperamos motive ainda mais os co-autores para a escrita dramática. Em especial aqueles (aquelas, mais propriamente, porque só participaram meninas) que entregaram os seus textos para o concurso de dramaturgia promovido pela organização do encontro.
Mas limitar o MarDrama a esses momentos, seria retirar-lhe o que ele teve de mais importante, que foi o encontro afectivo entre pessoas de três continentes, todas elas envolvidas em projectos ligados às artes cénicas, e entre estas e as novas gerações de jovens cabo-verdianos, que se concretizou não apenas na ‘oficina de escrita’, mas também em duas visitas a escolas secundárias do Mindelo para troca de impressões entre alunos, professores e dramaturgos convidados.


Não faltaram também ao MarDrama os espectáculos de teatro: o longo e sentido monólogo da actriz brasileira Lorenna Mesquita sobre a vida de Florbela Espanca, construído com as palavras da própria poetisa portuguesa, e a peça ‘Teorema do silêncio’, de Caplan Neves, com direcção de João Branco, sobre o sempre difícil tema da pedofilia e do abuso sexual de menores.


Seria injusto sair do Mindelo sem uma chamada de atenção para o mais generoso projecto cultural em curso na cidade – a criação da Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo (ALAIM), que procura recuperar um amplo espaço ao abandono para abrigar e acarinhar todas as vocações e dar formação em todas as disciplinas artísticas aos jovens mindelenses. O projecto só ainda não avançou, porque não tem apoio oficial e depende de contributos individuais. Do nosso também, por que não?


O MarDrama, nascido no Mindelo da sempre agitada cabeça do João Branco (“viciado em teatro”, já lhe chamaram!), vai agora, por decisão unânime dos que nele participaram, ter continuidade no próximo ano em S. Paulo e em 2017 em Luanda. Os mares que separam os nossos países e que nos legaram tantos dramas e tragédias, podem agora unir-nos na partilha de textos teatrais que contribuam para aprofundar o conhecimento uns dos outros. Afinal, nem todos os dramas são naufrágios…

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A mentira está na plateia

26/1/2015

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Está neste momento a decorrer um interessante e intenso debate sobre o teatro no Mindelo, despoletado por um texto publicado pela Patrícia Silva, professora de Expressão Dramática (ou lá como se chama a disciplina oficialmente) e grande apaixonada pelas artes cénicas cabo-verdianas. Um debate que se centra na questão do fazer ou não fazer, da qualidade ou não qualidade, da pressa ou falta dela, dos impulsos e razões que fazem com que tanta gente nova queira saltar para os palcos e abraçar - apressadamente - este fantástico mundo do teatro. 

O primeiro ponto de ordem que queria deixar aqui é que tive a preocupação de dizer diretamente à Patrícia o que penso antes mesmo de escrever este texto. Ainda somos muito inflamados na forma como debatemos certas questões, fica tudo com os nervos à flor da pele, sentimo-nos atacados, falamos de carapuças e de faltas de humildade ou de arrogância (o que é a mesma coisa), mas para mim o importante é que no teatro em S. Vicente se fala, se discute, se dá pedradas no charco, de uma forma saudavelmente aberta. Falta-nos ginástica crítica. Experiência. Estamos todos aprender. 

Claro que há opiniões que se guardam para nós, outras que só dizemos a alguns amigos mais próximos, é normal, mas isso não reflete necessariamente uma situação de má-língua ou de mau ambiente no meio teatral. Fui sempre contra esse tipo de conclusões até porque ao contrário do que acontece com outras formas de expressão artística a maneira como debatemos as nossas questões, em Fóruns, em encontros, em Assembleias ou nas redes sociais é muito mais clara, aberta e corajosa do que nessas outras áreas. Triste? Triste foi não ter lido nenhum músico da cidade a indignar-se com o que aconteceu com o miserável grupo de forró que nos visitou! Fosse com o teatro! 

Dito isto, sublinho que a Patrícia Silva no seu texto sobretudo se interroga. Todo o seu texto é feito de muitas perguntas e poucas respostas. E isso é bom. Cabe a nós procurar responder, se soubermos. Foi isso que fizeram alguns outros que se sentiram "alvos" de uma crítica já habitual não só no teatro. Recentemente, por exemplo, um mesmo debate surgiu a propósito dos jovens terem pressa em editar livros. Se o alvo não era aquele, mas sim os alunos de teatro da autora, penso que isso devia ter ficado claro. Ao não nomear ninguém, ela acaba por incluir toda a gente. Inevitável. 

Ora, eu sempre gostei desse caráter "atrevido" do teatro mindelense. Atrevimento no sentido de fazer, arriscar, experimentar, mesmo que não se domine certas linguagens específicas. Atrevimento em produzir em condições miseráveis, onde só uns poucos privilegiados podem ensaiar num palco e se paga para fazer teatro em vez de as companhias serem contratadas para preencher uma programação própria de um espaço público. Atrevimento em fazer um festival que hoje é um dos maiores do mundo, mas cujo Presidente da associação que o organiza ainda tem que fugir de credores como se fosse um vigarista só porque alguns patrocinadores públicos não desbloqueiam a verba prometida no tempo devido. Atrevimento em experimentar novas dramaturgias, em crioulizar os clássicos, em se despir na cena, em combater preconceitos sociais. Atrevimento é ensaiar em condições inacreditáveis e ainda assim aparecer com produções que não só não envergonham como ainda colocam o Mindelo como centro maior da produção cénica de Cabo Verde. 

Há tantos problemas estruturais no teatro cabo-verdiano, tantas injustiças contra nós e tanta gente corajosa e com talento a fazer que me parece que discutir o "excesso" de teatro é a última das prioridades. Qual é o problema então? Estamos a regredir? Há muito teatro que não tem qualidade? E porquê que isso acontece? Eu vou dizer o que penso sobre isto. É normal que haja muito teatro de má qualidade. Não temos condições de trabalho. Temos muito pouca formação. Não temos possibilidade de adaptar ao espaço. Agora nem podemos fazer as montagens de luz à noite! Monta-se cenário, faz-se a adaptação, montagem técnica, ensaio geral e estreia, tudo no mesmo dia! E mesmo assim, fazemos! Não é isso incrível? Eu penso que é!

O risco que se corre de regredir, de não evoluir, de pensarmos que somos uns génios não está localizado na cena, em quem faz, mas sobretudo em quem vê. O teatro não consegue mentir, mesmo que queira, mesmo que seja ele próprio uma grande e bela mentira. É transparente. Não tem efeitos especiais nem ecrã azul como o cinema. O teatro é de carne e osso. O teatro é pele. A mentira, no Mindelo, está do lado de quem vê. Nos aplausos que se dão sem sentir, nas visitas aos camarins para as palmadas nas costas, nas claques que se levam e tornam o jogo ganho à partida. Se é mau, escreva-se porque é mau. Se está a piorar, explique-se porquê. Falta crítica. Dizer gostei muito quando se detestou uma produção cénica é pior do que fazer a própria produção cénica pensando que se está a fazer uma obra-prima.  

No curso de teatro do Centro Cultural Português existe a obrigação de ver tudo e escrever sobre tudo o que se vê. Há anos que andamos a tentar incutir a importância de uma crítica sustentada num conhecimento básico, que permita escrever sobre um espetáculo apontando defeitos de forma construtiva e pedagógica. Faço esse apelo a todos: façamos esse exercício. Deixemos de escrever numa generalidade que não cabe no debate. Quando dizemos que a culpa é de todos em geral mas não é de ninguém em particular, estamos a dizer nada. Portanto, não importa que quem escreva sobre as produções cénicas seja ator ou encenador de uma outra. Melhor ainda. Escreve sobre um espetáculo de um colega e lê o que esse outro escreveu sobre o seu trabalho. Não pode haver melhor debate do que esse.

Deixemos, pois, de mentir na plateia. De aplaudir um espetáculo como se estivéssemos num jogo de futebol. Que tenhamos coragem de entrar num camarim e dizer, depois falamos, respira por agora, mas depois falamos. E então gostastes? Depois falamos. E falar! E partilhar isso com todos os outros. Porque é difícil alguém evoluir se todos lhe dizem que ele é um génio, entendem? Mesmo que ele saiba que é mentira... O ego é uma coisa poderosa e acabamos por nos acomodar.

A melhor crítica que já fizeram a um espetáculo meu foi com um texto em que o articulista pura e simplesmente arrasou com tudo o que foi feito em cena. Quando o texto foi publicado, marquei uma reunião com todo o coletivo, lemos a crítica em voz alta e quando a produção foi reposta, mudamos muita coisa, graças a essa leitura. Por isso vos deixo este apelo, se não gostarem alguma vez do meu trabalho, digam, escrevam, que eu não mordo. Se não gostarem de mim e isso pouco vos interessar, podemos continuar a dizer que tudo o que faço é fenomenal. Porque esse é o tipo de comentários que não serve para nada a não ser fazer uma massagem no ego que passa e adormece mais do que desperta. E o teatro quer-se é acordado! 

Bem hajam a todos. 




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    João Branco, encenador, actor, gestor cultural, cronista e professor de teatro. 

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