No ano passado, por ter sido ano 20 e festa em grande, muitos dos problemas foram disfarçados e até se aumentou o número de dias do festival, que entrou Outubro adentro. Este ano, já não houve tapete que chegasse para esconder a angústia que estamos a viver.
É curioso, e gratificante, ver tanta gente importante a falar do mindelact por estes dias, alguns até em fóruns internacionais, dando o exemplo deste festival ímpar como um sinal de sucesso da implementação das economias criativas em Cabo Verde. Mas hoje, digo-vos com toda a sinceridade, a criatividade não nos vai chegar. Já não nos basta. Por muito afecto que exista, que existe. Por muitas provas de generosidade que artistas de todo o mundo nos continuam a dar, oferecendo o seu trabalho, há um conjunto de factores mínimos que é preciso assegurar para que o afecto se possa materializar em bem-receber.
Nesta edição, pela primeira vez em muitos anos, vestimos a camisola do festival apenas de forma metafórica. Pela segunda vez não tivemos camisolas do festival, aquela recordação básica que levamos para casa no regresso e passeamos pelas ruas com a satisfação de termos connosco uma prova de que estivemos aqui, em Mindelo, em Cabo Verde, num festival que é adorado por tantos em tantas partes do mundo. Ah, e a primeira vez que não tivemos camisolas do festival foi em 1995, na sua primeira edição, inventada para um fim de semana e engendrada em apenas alguns dias por uns quantos malucos pelo teatro, arte quase desaparecida do panorama nacional naqueles tempos.
Este ano também não tivemos aquelas bolsas de pano, cuja moda de existência nos eventos foi lançada por nós, no festival dos amores pelo teatro. Este ano também não tivemos crachá, um simples cartão impresso a cores e colocado num revestimento de plástico, algo que nos permitisse exibir nas ruas da cidade do Porto Grande e para que cada um dos seus habitantes pudesse ver que sou um "artista", ou faço parte do "staff". Para que a cidade pudesse saber que também eu sou "mindelact".
Não tivemos nada disso para poder ter o básico dos básicos. Um sítio para os artistas se alimentarem e um outro para dormirem o mais confortavelmente possível. E sendo claro que a alegria mantêm-se, há uma triste nuvem a pairar nesta edição 21. Não podemos esquecer a intervenção dos responsáveis do mindelact, esgotados e quase sem esperança. Não é a música animada de todos os dias no pátio do Centro Cultural do Mindelo que vai amenizar isso, nem as gargalhadas do Enano, nem a qualidade ímpar de muitos dos espetáculos que temos programado, não apenas no auditório, mas em muitos outros espaços da cidade.
Na terça-feira emocionei-me porque vi o pátio cheio de crianças assistindo apresentação de dois brasileiros loucos com um talento inimaginável no domínio pleno das artes circenses, despertando naquelas mentes fascinadas pela magia que nascia ali mesmo, algo novo, quem sabe um novo amor pelo teatro. Uns tipos que vivem no Sal a entreter turistas porque adoram surfar mas que viajam pelo mundo fora, quando querem, porque tem talento e nome feito. E vieram ao mindelact, sem pedir nada, sem cobranças, sem exigências, apenas com aquela alegria de partilhar e de receber em troca o brilho e as palmas daquelas crianças.
Este foi para mim um festival de dor. Festejei, mas doeu. Emocionei-me, mas doeu. Porque a cada emoção boa eu só conseguia pensar, porquê que ainda não fomos bafejados pela sorte ou pelo bom senso? Porque será que temos que renascer das cinzas como Fénix, ano após ano, quando rios de dinheiro são esbanjados neste país e o que o mindelact precisa para continuar a marcar a diferença são apenas algumas gotas? Sim, é isso. Seja da taxa ecológica - porque as nossas mentes ficam mais limpas, nossos espíritos mais saudáveis; seja da taxa turística - porque contribuímos, e de que maneira, para uma boa imagem de Cabo Verde no exterior; seja num Contrato Programa com financiamento garantido pelo Orçamento de Estado fazendo jus ao Estatuto de Utilidade Pública que, a título oficial, a Associação Mindelact conquistou graças ao seu percurso e trabalho em mais de duas décadas; seja como for, algo tem que ser feito.
O sentimento é de tristeza sim, ainda que disfarçada. E a minha opinião é que todos os agentes teatrais se devem unir mais, se devem libertar das amarras do "eu" e criar laços com o "nós" e falo aqui para dentro, para o pessoal do Mindelo, que é quem tem a obrigação primeira de contradizer o tal dito popular de que santos da casa não fazem milagres. O festival Mindelact, o tal Milagract, já fez muito. É tempo de dar o retorno. De sentir as palavras transformadas em acção.
De outra forma, se em cinzas estamos por abandono e incúria, em cinzas prefiro ficar. Nem que seja ali, na quietude, como mostram as imagens de promoção da edição deste ano, tão certeiras e tão carregadas de um simbolismo de silêncio e de abandono. Cinco cadeiras vazias, voltadas para a imensidão do mar, as montanhas ou nalguma estrada deserta. Olhando o horizonte, esperando que o vento ou que alguma onda as leve, definitivamente. Será que ainda vamos a tempo de transformar esta triste poesia imagética em esperança? O futuro tem a palavra.