A propósito da viagem que está a ser feita por causa do livro "Palco 50" e da preparação da grande exposição de fotografias que retrata as 50 produções cénicas do Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, não deixo de me espantar pela lembrança que tenho de centenas de pequenos episódios ocorridos nos ensaios, montagens ou apresentações. Eu, que me consigo esquecer do nome de uma pessoa, dez segundos depois dela me ter sido apresentada, no que diz respeito ao percurso teatral, lembro-me de tudo. De tudo! E sou, cada vez mais, eternamente grato a todos quantos já trabalharam comigo. Sou mesmo. Principalmente, porque não me esqueço. Uns heróis, não me canso de repetir, aqueles que fazem teatro em Cabo Verde.
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A necessidade de reflexão sobre a temática do Teatro e cidadania resulta do facto desta forma da arte constituir um eficaz meio de intervenção social, cultural e educativo com vista a levar o ser humano a assumir-se como um ser com cidadania plena, plasmada no encontrar de espaços e momentos que permitam interação permanente. O teatro constituiu, como sabemos, uma necessidade humana no sentido de conferir às pessoas meios e instrumentos para a promoção da comunicação, interação, participação como vista a superar problemas e bloqueios que ocorrem, fruto de um viver sem conviver. É fundamental que se encontrem novas intervenções que respondam ao pulsar deste tempo que é um tempo em que o teatro e, consequentemente, a intervenção social, cultural, educativa e económica, são elementos que podem levar as pessoas a uma interação afetiva e efetiva que anule o individualismo. O caso de Cabo Verde Este fantástico Março – Mês do Teatro veio comprovar algo que já sabíamos há algum tempo: que a arte cênica é hoje um bem de primeira necessidade no nosso país, e a apropriação, pelo todo arquipelágico do conceito criado é um triunfo que não podemos desprezar. O facto é que o Dia Mundial do Teatro começou a ser comemorado com pompa e circunstância já nas portas do século XXI e foi no último ano do século passado, em 99, que o março – mês do teatro aparece com a ambição de se transformar “no segundo pólo de desenvolvimento do teatro em Cabo Verde”, isto tendo em conta que em Setembro tínhamos – e temos – esse grande evento que é o festival internacional de teatro do Mindelo – Mindelact. As programações anunciadas, sob a mesma designação, de todas as ilhas do arquipélago cabo-verdiano comprovam uma dinâmica que é impressionante mas não tanto inesperada. A verdade é que as sementes vem sendo plantadas de há muito tempo para cá. A aposta nas formações com os grupos das ilhas tem sido uma constante. O que sempre designei de factor político que está implicado na concepção da programação do nosso festival vem-nos dar razão, ao sermos confrontados com a realidade de hoje. Sempre houve a preocupação de trazer agentes teatrais de outras ilhas ao mindelo, para ver, beber, informarem-se do universo infinito do teatro e das suas imensas potencialidades. E hoje, os resultados estão à vista. Um município orgulha-se e promove o seu teatro, vereadores da cultura são conhecidos agentes teatrais, o próprio diretor nacional das artes, aqui presente, é um homem de teatro e podemos portanto afirmar que o teatro em cabo verde é hoje não apenas contra-poder, mas também poder. E estando nessa posição, torna-se apetecível. Porque a natureza humana é inevitavelmente atraída pelo sucesso, pela possibilidade de visibilidade e pelo alcance de realização pessoal e colectiva. Deixamos de ser marginais. Passamos a indispensáveis. Aquele que é hoje ministro da cultura escreveu um dia numa crônica de um jornal: um pais pode perder tudo, menos o seu teatro e o seu sentido de humor. Quem escreveu isto é hoje quem define as políticas para o sector e cria condições para a sua concretização no terreno. Isso acaba por trazer mais responsabilidades, muito maior visibilidade e certamente outras necessidades. Não falarei aqui dos projetos anunciados , em curso ou por concretizar, como a rede nacional de salas, o apoio à multiplicação de festivais nacionais de teatro ou à definição, mais ou menos clara, das políticas de incentivo do Estado à arte cênica. Esse foi tema discutido amplamente já neste Fórum. Mas falarei da forma como a pressa pode ser inimiga da perfeição e a vontade de mostrar “serviço”, pode gerar confusão conceptual, falta de preparação para fazer o que se pretende fazer, inexistência de rigor nas declarações públicas ou uma gritante falta de informação e de formação que poderia tornar o teatro uma ferramenta ainda mais poderosa para a manifestação de uma cidadania ativa, desafiadora e participante. Digo-o sem papas na língua: a introdução da disciplina de expressão dramática nas escolas roça o anedótico e a irresponsabilidade. Não temos professores preparados, não temos materiais pedagógicos convenientes, não temos metodologia de ensino. Temos alguns agentes educadores com muita vontade e a nível nacional apenas uma mão de casos de gente minimamente preparada para essa tarefa complexa que é introduzir o teatro nas escolas. Não basta dizer-se que o importante é começar e que o resto virá assim, como que por geração espontânea. Não basta a manifestação de vontade política por muito que se saiba que sem esta nada avança. Principalmente sabendo, como muitos dos presentes nesta sala sabem, que o teatro mexe com o ser humano, e mais ainda, com as crianças e jovens de uma forma intensa e a vários níveis: psíquico, social, ajudando a formar valores e a definir personalidades, tocando em assuntos proibidos, e como todas as ferramentas, mesmo aquelas que são utilizadas no sentido metafórico, quando mal utilizadas podem provocar mais danos do que benefícios. Sendo teatro sobretudo comunicação é normal e positivo que seja utilizado como instrumento de intervenção política e de cidadania activa. Mas como qualquer estudante de marketing básico saberá, uma mensagem que é mal passada ou deficientemente preparada, pode causar mais danos do que benefícios e tornar-se contraproducente. A pertinência das mensagens tem que estar aliada de forma sólida à qualidade do seu corpo, tem que estar munido de um conjunto de conceitos, tem que ter coerência informativa e formativa, para poder atingir os seus alvos e assim os objectivos para os quais foram criadas. Hoje, se dermos uma rápida passagem pelas programações nas diversas ilhas e concelhos poderemos verificar que muitos grupos de teatro estão, numa primeira e superficial abordagem, a utilizar o teatro como instrumento de intervenção social, reforçando dessa forma o seu papel e transformando os seus agentes em cidadãos mais activos. Será que é mesmo assim? Será que basta termos inúmeras peças sobre temas como violência domestica, o vírus da sida, o alcoolismo, os problemas conjugais, luta contra o preconceito para ficarmos descansados de que o teatro está a ser bem utilizado para fazer chegar a um publico vasto um conjunto de mensagens que, à partida, se pensam serem necessárias e pertinentes? Qual é a qualidade dessa comunicação? De que forma ela é construída? Com que técnicas? Com que metodologias? Com que cuidados? Por vezes, a confusão é tanta, que se misturam assuntos e querendo combater se acaba por promover o preconceito, ou então ao querer abordar determinado tema mais delicado que implica uma qualquer problemática social, se acaba por alimentar o monstro dos tabus e temos o teatro a servir de auto-estrada em dois sentidos, em que o feitiço se vira contra o feiticeiro. Como precaver estas situações? Como fazer do teatro um verdadeiro instrumento de pedagogia social e até, porque não, de intervenção política, no sentido mais lato do termo? Os três eixos fundamentais Eu penso que a resposta está em alguns eixos fundamentais, sem os quais estaremos a dar um péssimo uso de uma arte que todos amamos e, pior ainda, a transformar o teatro em arma de arremesso contra nós próprios. O primeiro eixo está na informação. Não podemos querer abordar determinado tema sem procurar saber tudo sobre ele. Não podemos falar de doenças sociais sem investigar, procurar, inquirir, falar com profissionais da área e construir a nossa mensagem de forma séria e coerente, até porque estamos a utilizar um instrumento de comunicação poderoso – o teatro – e a mexer com assuntos delicados. O segundo eixo está na formação. A qualidade da mensagem, no caso teatral, está indissociavelmente ligado à qualidade do teatro que se apresenta e à correcta utilização de técnicas que nos permitam tirar dele, do teatro, o melhor proveito. Um teatro de má qualidade afasta as pessoas do teatro e da própria mensagem que este pretende veicular. A má qualidade da mensagem torna-se, em muitos casos, até perigosa. Finalmente, o terceiro eixo centra-se na responsabilização. A cidadania activa exige responsabilidade. Um teatro de intervenção não é um teatro de recreio de má qualidade. Exige tanto ou mais trabalho que um qualquer outro tipo de teatro, muito embora eu pessoalmente até seja avesso a este gênero de terminologias. A um cidadão activo, cuja intervenção se manifesta por intermédio de uma forma de expressão artística, é-lhe exigido preparo, rigor e qualidade na acção. Ora, nos dias de hoje, a informação está à distancia de um simples clique. As redes de transportes, por um lado, e de solidariedades, de voluntariado e de associativismo, por outro, permitem uma circulação de gente diversa, não só qualificada e preparada, como disponível para colaborar e se associar a projetos de teatro comunitário e de intervenção social. É só saber procurar, identificar e desafiar os parceiros certos. Neste momento, podemos pensar como é possível, num país em que uma importante componente das suas manifestações teatrais existentes reivindicam esse papel de mensageiro social - como podemos comprovar pelos programas do março – mês do teatro nas ilhas – pouco ou nada se tenha feito para implementar técnicas do Teatro Oprimido de Augusto Boal ou se tenha pensado um pouco mais a sério em ligar as idéias amplamente documentadas de histórico pedagogo como Paulo Freire, e a sua Pedagogia da Libertação, na pedagogia teatral que tanto se apregoa por aí como existente nas nossas escolas. As teorias defendidas por este último, para quem não sabe, são a base fundamental de todo o programa pedagógico e educativo da SP Escola de Teatro, que é, a partir de S. Paulo, o maior centro de formação em artes do palco de toda a America Latina, e que tem, de certa forma, revolucionado a forma como o ensino do teatro começa a ser visto não apenas naquela região mas também na Europa, como acontece por exemplo, no Conservatório de Estocolmo, na Suécia, uma das mais antigas escolas de teatro do mundo. Também por isso, e dando o exemplo de Portugal, um dos mestrados mais procurados e existente em vários estabelecimentos de ensino superior daquele país, é o mestrado em Teatro e Comunidade onde o foco está, precisamente, no papel social da arte cênica e na sua implementação, de forma ativa e consciente, no seio de uma determinada comunidade, como forma de incentivar uma cidadania activa. Conclusão Arte, política, palco e comunicação são noções que se cruzam. O estudo da história do espetáculo aponta que em diversos momentos o teatro foi utilizado pelo Estado ou pela Igreja como veículo das suas mensagens e propagandas. Também não é por acaso que quando se instalam regimes ditatoriais através de violentos golpes de estado, os teatros são quase sempre os primeiros edifícios a serem encerrados pelas novas autoridades e instala-se de imediato um controlo sensório de enorme violência. Dai se induz o poder que o teatro pode ter, se bem utilizado enquanto instrumento de transmissão de saber, conhecimento e alerta. No meu ponto de vista, este tipo de abordagem do teatro e a sua prática no terreno, continua a ser encarado em Cabo Verde de forma irresponsável e leviana. Pelas razões que apontei, o caminho é longo, mas é preciso querer-se andar. Se o teatro for apenas veículo de promoção social a nível individual – e hoje essa motivação é inquestionável dada a visibilidade que o teatro granjeou e soube conquistar – nunca conseguiremos, enquanto agentes desta arte tão fascinante, ser criadores e interventivos sociais em simultâneo. Poderemos até conseguir uma carreira, mas plantaremos poucas sementes e desse terreno à nossa volta pouco nascerá de novo. Será fundamental aproveitar este bom momento para alertar que não basta querer, é preciso e fundamental o saber. Cabe às autoridades, em primeira instância, uma maior seriedade na implementação de programas pedagógicos na área. Cabe a nós, sobretudo a nós, uma muito maior exigência na construção das mensagens que pretendemos difundir. Porque se assim não for, poderemos até orgulhosamente ostentar o titulo de artistas, mas teremos muito pouco de cidadãos. Nota: comunicação lida no Ii Fórum Teatro, no Mindelo. "A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser génio."
Fernando Pessoa O K Cena – Projeto Lusófono de Teatro Jovem, lançado em 2012, é uma iniciativa do Teatro Viriato (Viseu, Portugal), em parceria com o Teatro Vila Velha (Salvado r-Bahia, Brasil) e Instituto Camões/Centro Cultural Português - Pólo do Mindelo, com o apoio local da Mindelact – Associação Artística e Cultural (Cabo Verde). O projeto prevê a promoção de oficinas orientadas pelos encenadores “residentes” de cada estrutura parceira e vocacionadas para a abordagem ao trabalho de ator, com vista à preparação dos grupos locais para a montagem do espetáculo, que será dirigida pelo encenador “convidado”. No seu segundo ano, o projeto K Cena tem-se revelado das experiências mais enriquecedoras da minha vida artística, pelas suas características peculiares que coloca três encenadores numa espécie de placa giratória cujo epicentro é uma obra literária riquíssima e plena de múltiplos signos e possibilidades de exploração. Na edição de 2014, eis-me envolvido até ao tutano com a obra-prima de Cervantes, D. Quixote de la Mancha, na belíssima cidade de Viseu, Portugal, tendo como parceiros de viagem dez adolescentes generosos, criativos e com a coragem necessária para enfrentar as duas vias pelas quais resolvemos viajar pela monumental obra do escritor espanhol: as causas perdidas e a loucura. Sem temor, sem rede, sem preconceito, partimos de um ponto de ordem para mim fundamental: só iríamos falar aquilo que eles quisessem dizer, sentissem vontade de gritar, o que fosse. Sendo jovens adolescentes num país vivendo uma crise profunda – que é muito mais do que uma crise financeira – eles surpreenderam-me no primeiro embate e trouxeram a morte, a liberdade, a culpa, a angústia, a vaidade, a perca de memória e a solidão para a linha da frente da dramaturgia deste espetáculo. O universo plástico criado, os movimentos desenhados em cena, as sonoridades propostas em cada relato individual, foram fruto sobretudo das suas propostas, dos seus desejos, das suas vozes, das suas vontades de falar e de não calar, de serem loucos, numa sociedade onde desde muito cedo lhes é vedada tantas e tantas vezes a possibilidade de voar além do rente solo da normalidade quotidiana. Já Beckett dizia: “Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem.” E para a maioria que teve o azar de não permanecer há sempre a esperança do teatro, que é a maior via rápida que conheço na luta contra a triste rotina diária, que não nos deixa ser mais, ser diferente, ousar, sonhar acordado, rir alto, gritar sem razão aparente, chorar por tudo e por nada, viver outras vidas e tornar a viver a nossa, sem culpa, sem remorso, sem penitência. “Dulcineia já não mora aqui” foi o nome que escolhemos para um espetáculo que teve um acolhimento extraordinário por parte do público, nas suas três apresentações, bem no final de Abril. Escolhemos este título porque aquela que foi a maior musa inspiradora do mais universal dos loucos (perto de D. Quixote, só mesmo o Rei Lear de Shakespeare), foi uma invenção da sua cabeça e enquanto ela existiu, ele se deu a si próprio o direito de viver aventuras mil. Ela, Dulcineia, foi o motor da sua sandice, a força motriz da sua capacidade visionária que transformou a sua vida um exemplo para milhões de pessoas, de todas as idades, de todas as culturas, de todos os quadrantes, desde há muitas e muitas gerações. Dulcineia foi o coração da sua humanidade. É urgente, pois, chamarmos de volta às nossas vidas as Dulcineias de cada qual. Só elas nos poderão salvar de uma vida enfadonha, solitária e sem tempero. É urgente perdermos o medo delas tomarem conta das nossas existências, porque a vida é curta e cada instante conta para o balanço que sempre se faz em cada final. E, por fim, para colocar de pé uma alegoria desta amplitude e com esta ambição de tocar nas pessoas, sem a certeza de o conseguir fazer, resta-nos agradecer todos aqueles que fizeram do todo uma força infinitamente maior do que a soma das partes. Os meus parceiros K Cénicos Graeme Pulleyn e Márcio Meirelles, cavaleiros de incalculável valia e coragem; o generoso Roberto Terra – personificação do que eu gostaria que fosse o meu Sancho Pança – que sempre me aparou durante todo o processo; a formidável equipa do Teatro Viriato que nos fez sentir invencíveis e capazes de superar todos os desafios; e o meu exército de dez insuperáveis cavaleiros e damas, que fizeram desta aventura por terras de Viseu uma doce e magnífica jornada. Foi bom fazer parte deste sonho louco, bem acordado para a vida. O que mais, além do teatro, nos permite vivências como essa?editar . Confesso, torna-se até um pouco insuportável: a cada produção cênica, a cada nova aventura, não consigo fazer tarefas outras, falar de novos assuntos, meu foco acaba, invariavelmente, nos mil e um pormenores de que nos devemos ocupar quando estamos em processo de criação. Como pais corujas, no blog pessoal, nas redes sociais, só se fala dele (do “filho”), sobre ele, quase que obrigando os amigos a olharem para ele (para o “filho”). Cada peça de teatro nova é, pois, como um filho. E já lá vão cinquenta.
Quando a temporada acaba, há sempre um pedaço de nós que morre. Fica ali, impregnado nas tábuas. Nos figurinos, nos pedaços de cenografia, nas fotografias que se tiraram, nas notícias de jornal que foram publicadas e, sobretudo, nas nossas memórias. De quem viu. De quem transmitiu. Se vestiu. No caso dos atores, nos corpos. Que estes também têm memória, como se sabe. E fica um vazio, vamos falar do quê agora? Para quem? Com quem? Até que aparece um novo projeto. E voltamos ao nosso ciclo vicioso de um viciado de teatro, algo que já confessei ser, nestas crônicas mensais. E, portanto, eu vou dizer algo que já disse, provavelmente das 49 vezes em que produções cênicas viram a luz e nasceram na (e para) a cena. Esta, sim, é especial. Nunca houve como esta! Acreditem, tanta coisa nova, desafios tremendos, generosidades encontradas, talento múltiplo, energias cruzadas, e desta vez – aqui sim, posso gritar em alto e bom som – inédito! Oito mãos na escrita, na construção de uma dramaturgia (nova?) multicultural e multinacional. Falo do espetáculo que iremos estrear aqui na cidade do Mindelo, no próximo dia 20 de março. Falo de “Quotidiamo, esta não é uma história de amor”, um texto escrito a oito mãos (nestes tempos modernos, as mãos são sempre em dobro, já que se digitaliza e não mais se “manuscreve”), em quatro países e três continentes. Sinceramente, não sei onde ou quando me nasceu a ideia. Desafiei o escritor Rui Zink, de Portugal, a iniciar o processo. Depois, o dramaturgo José Mena Abrantes, de Angola, a dar seguimento. De Cabo Verde, convidei Abraão Vicente para avançar com a terceira parte e, finalmente, desafiei o Ivam Cabral, cujo espírito de generosidade falou mais alto do que a falta de tempo provocada pelos bilhões de projetos em que sempre se encontra envolvido. Que privilégio, ter um texto escrito por estas quatro pessoas tão talentosas! E agora, publica-se? Não, não foi esse o combinado. Vamos lá, senhor diretor, meta as suas mãos na massa e avance para a etapa seguinte. A história nasceu sem nome e foi-se revelando assim, órfã de um batismo. Até que chegamos a uma palavra nova, criada para o efeito. “Quotidiamo”. O título do espetáculo, que é um jogo entre as palavras quotidiano e amor, dá um vislumbre do retrato desenhado pelos quatro autores do texto: a relação de um casal que é vítima dos problemas do dia a dia, desde a crise financeira à própria rotina de uma vida a dois. Não podia ser mais universal. Para dar corpo, voz e alma às palavras seria indispensável uma dupla de atores mais do que competente. Duas pessoas que não tivessem medo de arriscar, de se jogar, e com uma capacidade técnica acima da média. Quis o destino que este pequeno elenco também fosse multinacional. Janaina Alves, brasileira, a viver no Mindelo há cerca de três anos, e Renato Lopes, um dos atores cabo-verdianos mais talentosos da nova geração, aceitaram o repto e com dedicação, talento e suor, dão o corpo ao manifesto cênico que nos chegou em mãos. De Portugal, vieram mais duas colaborações artísticas: o músico e compositor Rui Rebelo compôs uma belíssima trilha sonora – algo raríssimo em Cabo Verde, apesar de sermos conhecidos como um país musical – e Paulo Cunha, que desenha a arquitetura luminosa do espaço e das cenas, sendo ainda responsável pela projeção do vídeo que, em tempo real, está sendo filmado pelas personagens e emitido no fundo, acrescentando ao caráter já trimendisional (TD) da arte cênica uma possibilidade de visão em alta definição (HD), das expressões e do respirar das personagens nalgumas passagens da história. Para compor o bolo criativo, estou eu, que neste momento não tenho mais assunto a não ser este. Um encenador / diretor cabo-verdiano, filho de pais portugueses, nascido na França, pai de duas filhas crioulas e casado com uma brasileira do Piauí. É como se esta produção tentasse ser, de alguma forma, uma síntese de mim mesmo enquanto agente teatral, o culminar de um amadurecimento artístico, de influências díspares e cruzamentos de três continentes, com epicentro numa bissetriz chamada cidade do Mindelo. Numa altura em que por razões acadêmicas me encontro mergulhado numa profunda reflexão sobre identidade cênica, mormente do teatro que se faz em Cabo Verde, corolário de um percurso de mais de vinte anos de trabalho e meia centena de produções encenadas, “Quotidiamo” não deixa de ser uma obra paradoxal. Mas continuo convencido de que somos do lugar de onde somos felizes. Que o nosso umbigo, enterrado algures, e o nosso DNA, herança dos nossos antepassados, se manifestam de uma ou outra forma conforme o contexto social, cultural, geográfico, antropológico do lugar onde nos encontramos. O que sempre chamei de “a energia do lugar”, é isso que nos vai moldando. É por isso que não tenho qualquer dúvida em afirmar que “Quotidiamo” é uma obra de teatro cabo-verdiano, puro e duro, apesar da diversidade na origem das diversas colaborações artísticas que lhe deram corpo. Porque nasce aqui. Neste chão. Emana com esta poeira oriunda do deserto do Saara. Com a maresia deste mar azul que nos rodeia por todos os lados. Com a musicalidade deste povo que ecoa a cada esquina. Porque a universalidade do tema nos toca também, embora seja quase sempre difícil admiti-lo, assim, fora do recato onde se escondem a sujeira e as frustrações do nosso dia a dia. “Quotidamo” veio do mundo mas nasce em nós. E para o mundo há de voltar. E eu, que acabei de saber que especialistas ingleses, da Royal Company of Shakespeare, num Fórum Internacional em S. Paulo sobre o dramaturgo inglês, ficaram de boca aberta, admirados e querendo saber mais, quando souberam das nossas crioulizações, quando viram fotos da nossa bela e especial "Tempêstad". Orgulho deste nosso teatro cabo-verdiano!
Em Cabo Verde festejou-se o teatro durante 31 dias em praticamente todas as ilhas. Para se entender a evolução destas duas últimas décadas, é preciso ter consciência que o Dia Mundial do Teatro foi comemorado de uma forma cerimonial, pela primeira vez, já no final do século XX, em 1999. No ano seguinte, a Associação Artística e Cultural Mindelact surgiu com um novo conceito, o "Março – Mês do Teatro" e a ideia era estender as comemorações do Dia Mundial do Teatro por todo o mês. O primeiro lema, que ainda hoje perdura, foi "mais teatro para um melhor teatro".
O interessante é que uma atividade que nasceu de um movimento associativo local, se transformou, hoje e passado uma década e meia, numa iniciativa nacional, adotada por grupos, companhias, associações, governo central e prefeituras. O mês de março se transformou num mês de teatro no arquipélago e o principal objetivo que o originou – a promoção da arte cênica em Cabo Verde – é plenamente atingido. Em todas as ilhas se fez e promoveu o teatro em Cabo Verde. Na minha cidade, no Mindelo, foram apresentadas mais de duas dezenas de peças diferentes. Uma das companhias locais, com uma produção chamada "Cinco peças para cinco sentidos", atingiu a proeza de apresentar 70 espetáculos no espaço de quatro dias, num dos edifícios mais antigos e emblemáticos da cidade. Essa companhia, chamada Trupe Pará Moss, e cuja diretora artística é Janaina Alves, uma brasileira do Piauí, propôs cinco peças curtas. Em cada uma delas o público era como que obrigado a utilizar um determinado sentido. No paladar, as pessoas viam a peça à volta de uma mesa, enquanto comiam uma refeição completa, com entrada, prato principal e sobremesa. No tato, as pessoas entravam numa sala de operações de um hospital e no escuro eram levadas para a maca, sendo "operadas". Na audição, a peça passava-se dentro de um automóvel, e o público ouvia a conversa através da amplificação sonora, a uma distância considerável do veículo. A companhia repetia as cinco peças três vezes por dia e, no terceiro dia de apresentação, a procura foi tanta que resolveram fazer mais uma sessão extra. Isso de alguma forma exemplifica o entusiasmo que a arte cênica vem conquistando em todos os cantos destas ilhas, mesmo que o lugar-comum seja a falta de condições. Ensaia-se em terraços, quintais, casas particulares, salas emprestadas, em qualquer lugar. Por haver falta de auditórios e espaços equipados para apresentação de espetáculos, a imaginação avança e faz-se onde e como se pode. Novamente em terraços, quintais, nas ruas, edifícios que se transformam em pequenos auditórios. Não se pode é deixar de fazer teatro. A arte cênica tornou-se, em Cabo Verde, um bem de primeira necessidade. Lindo, isso, não? Há falta de formação, de material, de técnicos, muitas vezes de conhecimento. Não há falta de vontade, de energia, de atrevimento e hoje, pasme-se, o teatro deixou de ser o lugar do contrapoder, para ser poder. O número dois do nosso Ministério da Cultura é um ator e diretor de teatro. Vários dos responsáveis pela política cultural das prefeituras, são diretores de companhias de teatro nas suas cidades. A visibilidade que o teatro hoje permite também se tornou apelativa. Os meios de comunicação social sabem que o assunto interessa, correm atrás, entrevistam, promovem e a vaidade, tão natural quanto humana, torna-se uma motivação extra e ajuda a entender os muitos sacrifícios que se fazem aqui para conseguir montar uma peça de teatro. Num país de emigração, onde a necessidade (e tantas vezes o sonho e a ilusão) de evasão sempre foi grande – a psicologia social explica que esse é um fenêmeno natural nos ilhéus – o teatro tornou-se também um passaporte para o exterior, com a proliferação do mercado dos festivais de teatro e a democratização da informação. Hoje, já é natural que criadores apostem em espetáculos de pequeno formato, pensando em futuras e imediatas candidaturas a festivais no exterior. O teatro cabo-verdiano internacionalizou-se. Tornou-se apelativo e sedutor. Se tudo isto apenas traz sinais positivos? Naturalmente que não. A pressa continua sendo inimiga da perfeição e a sede de protagonismo que esta onda teatral provoca, dá azo a que em muitos casos o produto final seja descuidado e de má qualidade. Sorte nossa que temos um público generoso mas conhecedor. Que admite o esforço mas não passa a mão na cabeça dos criadores. Sendo verdade que falta uma cultura crítica – ela é próxima do zero, atualmente –, também podemos dizer que hoje, no patamar em que nos encontramos, fruto de muitas e belas conquistas, temos que nos obrigar a fazer melhor, ser muito mais exigentes conosco e com os nossos parceiros de cena, nos grupos e companhias onde estamos inseridos. A popularidade carrega consigo muitas vezes a mediocridade e mais do que incentivo deveria servir de alerta. Pessoalmente, e depois de uma temporada, de uma estreia, fica sempre um vazio, uma angústia muito grande. Mesmo depois de tantas palavras elogiosas – "incrível", "intenso", "diferente", "estou de boca aberta", "extraordinário trabalho" – que alguns espectadores deixaram registado à saída do local de apresentação, mesmo sabendo que cumprimos a nossa missão, com suor, sangue, muitas nódoas negras e horas de sono perdidas, fica-me um vazio, como o de um filho que já foi, para longe, viver a sua vida. Hoje, como de todas as outras vezes, parece que carrego comigo todas as dores do mundo. |
AutorJoão Branco, encenador, actor, gestor cultural, cronista e professor de teatro. Arquivos
October 2016
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