Já se previa que este seria um dia emocionante. As histórias de Cabo Verde contadas por esse animal de palco chamado Carla Galvão, com raízes na ilha do Fogo perceptível no seu belo crioulo – nhor Deus, bensoa ess spetaculo! Bensoá ess spetaculo – numa produção que estreou mundialmente há sete anos neste mesmo palco onde de novo foi apresentado.
“Contos em Viagem Cabo Verde” é a prova de como o teatro consegue produzir magia, humanismo, lágrimas, aplausos, comunhão. A actriz em palco mostra como se faz. E verdadeiramente, só se pode fazer assim: com o corpo todo, com todas as células, com todos os nossos pedaços, tudo presente, tudo é energia, tudo é comunicação. O espectáculo é um poço de emoções sem fim, não apenas pela sua extrema limpeza e qualidade cénica. É-o porque nos coloca frente a frente com a nossa identidade crioula, generosa, irónica. Uma identidade que teve a sua origem no povo, passou para as palavras dos escritores nacionais e destes para a voz da Carla Galvão e os incríveis sons criados ao vivo pelo mago Fernando Mota. E é quase com sodade que a vemos e que com ela nos confrontamos. É quase uma identidade perdida. Toca-nos não apenas por que nos identificamos, mas porque a perdemos algures no frenesim das tecnologias, da crise económica, da violência urbana, da maledicência geral instalada. O espectáculo é sobretudo um retrato de um tempo que já la vai e por isso nos emociona tanto.
Mais tarde, no pátio, Enano despe-se. Em primeiro lugar, despe-se do palhaço que sempre o cobre e o deu a conhecer ao mundo. Depois, despe-se de preconceitos, de medos pessoais e conta a sua história cigana, as suas origens, a sua família, de coração aberto, numa espécie de cirurgia emocional, feita ali perante os amigos que tanto o amam. Finalmente, despe-se, literalmente. Numa homenagem tocante, fica como seu pai mais gostava de ficar, nu, pelado, sem roupa, tal qual viemos todos ao mundo e joga parte das cinzas do seu progenitor na árvore do pátio, exorcizando todas as dores do mundo. Khalid K canta os seus acordes magrebinos e as estrelas e todos os planetas do Universo se alinham numa perfeição cósmica irrepetível.
O teatro foi, neste dia absolutamente incrível, a arte de todas as emoções.